domingo, outubro 3

Entre o perdão e o esquecimento


Aos 40 anos uma mulher descobre que a sua vida é uma mentira. O pai não é seu pai, os seus irmãos, não são seus irmãos e o avô que visitou, durante tantos anos, no cemitério de Coimbra, cidade onde nascera, vive na Holanda.
Poderia não ser importante descobrir a verdade, uma vez que a sua família de coração e de fé, eram todas as outras Carmelitas Descalças do convento onde vivia. E Deus. Vivia para Ele e com Ele. Em silêncio e oração. Numa fé só de eleitos.
Abandonou a sua vida de recolhimento. Colocou o hábito dentro de uma caixa. Despediu-se de toda a gente no mosteiro que sempre a consolou e resguardou do mundo.
Voltou a chamar-se Helena. Leni, como lhe chamavam os irmãos e a mãe. E partiu em busca de si, da sua história. Com fé. Talvez na força de um pedido da sua mãe, expresso numa carta deixada, antes de morrer. Tinha ela 14 anos.
Já na Holanda, na praça de Dam Square, ainda desajeitada naqueles trajes de mulher comum, comprou um chapéu que lhe tapasse a cabeça.
Ainda bem que tudo lhe estava a acontecer no Inverno. Assim vestida e calçada, o desconforto não era total. Não saberia como lidar com o sol na pele.
Helena caminha em direcção ao hotel. Sente medo. Medo e desejo.
Medo de saber quem é; desejo de saber quem será.
Com quem se parceria? De quem herdou os olhos esverdeados, o rosto angular, o cabelo claro e sedoso, o corpo esguio, as mãos de pianista?
E, principalmente, de quem herdou aquela vontade de ajudar o mundo em silêncio e recolhimento, só com o poder da oração?
E de onde lhe vinha aquele fascínio pelo céu, principalmente quando a noite cai e o telescópio vigia as estrelas. A astronomia, que estudou, ainda hoje a fascina e comove. Passou a infância a olhar para o céu e a adolescência a ponderar se Deus mora lá. Acredita que sim, que mora.
Tantas certezas sobre as estrelas e sobre Deus e, agora, enquanto caminha, nenhuma sobre si. Helena é o dogma da sua existência. Disseram-lhe que era filha de Mário Vila Franca e Antónia Vila Franca e ela acreditou. Disseram-lhe que era a irmã mais velha, de dois irmãos, e ela acreditou. Nunca colocou nada em causa. Nada.
Até porque estava escrito. E as coisas escritas parecem indesmentíveis.
E agora, na mala que desliza atrás de si, tem a carta que o pai lhe escreveu para o convento, poucos dias antes de morrer. E como pesam as cartas que chegam dias antes de quem as escreveu morrer.
Que sempre a amou como filha mas que não era sua filha. Que procurasse o avô materno, na Holanda. Que o paterno, é verdade, tinha morrido, mas não tinha campa, em Coimbra.
Que guardasse os documentos que lhe envia com a carta. São originais. E que perdoasse ao seu verdadeiro pai e lhe perdoasse a ele, também, por nunca ter tido a coragem de lhe contar a verdade. Mas, fosse qual fosse a verdade que encontrasse, morria certo do seu perdão. Afinal, uma freira, tem por dever perdoar. E sabe fazê-lo melhor do que qualquer outra pessoa.

Helena caminha em direcção ao hotel, tão absorta nos seus pensamentos, que não repara num velho vigoroso que a segue desde que deixou o aeroporto em direcção ao centro da cidade. O velho que a viu comprar o chapéu sem o experimentar, segue-lhe os passos.
Os passos de uma mulher comum, para a qual a vida deixou de fazer sentido no recolhimento e na oração. Uma mulher entre a memória e a mentira. Entre o esquecimento e o perdão.

terça-feira, julho 20

Como se houvesse milagre


Não tenho postado. Não é só preguiça. Motivos há imensos.Sobra-me o espanto.
Histórias. O tecto do meu quarto está lotado. De repente, Viseu, Lisboa, Luanda.
O mundo ficou sem fronteiras. Para uma galaico-duriense, agarrada à meseta de afectos. E não pensem que não sei o que são terramotos. E sismos.
Sei bem. Não sei, se sei de sobra. Mas sei bem.
E sei o que é pegar na régua e no esquadro. Outra vez.
São 200 anos. É muita vida. E às vezes sinto-me cansada.
Eu de suplemento na mão, a desfolhá-lo,
em vez de o pôr no lixo, como sempre.
Espaços & casas ou vice-versa. Ou nada disto.
Casas em Lisboa em páginas de jornal.
Eu de marcador a fazer círculos à volta dos anúncios.
Eu a fazer e a não estar a acreditar no que fazia.
Eu a perceber que às vezes não acreditamos no que fazemos mas fazemos.
E fica feito. Eu a fazer analogias, a desviar-me do cerne da questão.
E os anúncios, tantos. E a faltarem-me as ruas, as zonas. Sei lá onde fica isto.
Eu, entre a luz e o granito. E o granito como retrato e a luz como estímulo.
Eu a telefonar. A perguntar por preços, voz segura. Coração trémulo.
Mas a perguntar. Como se nunca tivesse dito não a Lisboa. Convicta.
Eu a pesquisar na net. À procura de Luanda. No Belas Shopping.
Eu tentada. Já no avião. Nas nuvens.
Com vontade de regressar e ainda não tinha saído do sofá.
Eu a fazer contas e a apagar o sorriso dos meus sobrinhos do quadriculado do caderno. A sentir os xis-corações. Os seus braços a crescerem à volta do meu pescoço.
Deixa-te de ser lamechas. Vá. Deixa-te de tretas. Vai ser muito bom. E mesmo que não fosse.
[...]
Não vale a pena. Às vezes não vale. Mas há imagens que insistem.
Acontecem em minutos e repetem-se uma vida.
O pisa-papéis, pesado, precioso, na cabeça do Senhor Manuel.
O pisa-papéis inteiro na cabeça do pisa-mansinho que queria ir a Nova York mas não sabia falar inglês.
Como foste capaz?
A mercadoria do contentor por conferir. A recusa da assinatura.
Ò dra. não assina? Isso vai dar problemas. E deu.
A gajita de 26 anos a chamar-te demasiado educada. Como se fosse um insulto.
A dizer-te que era preciso ter tomates. Como se fosse um requisito.
E tu, polida, a dizer que tomates, tomates, tem quem recusa uma pipa de massa à porta de casa. Que - perdão - tomates, tomates, tem o Senhor Manuel, que levou com o pisa-papeis do Dubai nas trombas e nem chiou. Cambaleou. A sangrar. Pingas de sangue no mármore. Atrás de si. E depois, no Jaguar. Surreal.
[...]
A tentação, à flor dos lábios. Voz alta, dentro do carro.
- Porquê a mim? A ti, porque sim, porque se não fosse a ti, era a outra qualquer.
E depois, de repente, já perto de Lisboa ou Luanda, aconteceu.
O coração, feito casa de muito movimento.
Alfândega de novas mercadorias.
Voltado para o Douro, feito cais de afectos.
O granito como retrato, a luz como estímulo.
Como se houvesse milagre.

quarta-feira, maio 19

Como se filma?


«Façam luto à literatura!»
[lembras-te?]
E o nosso olhar voltou a sintonizar-se num espanto.
Foi no tempo em que fomos aprender a escrever guiões, como se não os tivéssemos todos cá dentro.
O problema é que estão cheios de literatura ou lá o que é.
Tu, com «aquele chão conhecia-lhe os passos», deste a deixa ao professor.
E como se filma? Como é que se filma um chão assim? [lembras-te?]
Ele a perguntar e a dizer que não se escrevem essas coisas. [para os filmes]
É de madeira? É de pedra, de terra?
Toda a gente sabe como é um chão que conhece os passos de alguém. Mas, pronto!
[ainda não tenho o fim. ainda não sei como vai acabar, não é bom, pois, não? desde que me
ensinaste o que aprendeste, tenho desvalorizado os princípios. estou concentrada no fim, mas ainda não o vejo. tem de ser o mais importante. o fim.]
Aprendemos tanta coisa, enquanto nos prendemos. Enquanto nos ligamos.
Ou estaríamos só a restabelecer filamentos ancestrais. Arquétipos de sonhos comuns?
«Frágil, viva, sempre em mudança, o guião é a crisálida». Ou serias tu?
Não me demorei a ver-te as asas. Mas, a tua aparência era assim: frágil, viva, em mudança. [como os guiões. como a vida.]
Queres vir? «Eu vou. Não sei se vá…Não sei se fique...»
Como se filma a hesitação de uma borboleta decidida?
[longe da literatura. foi o que anotei. porque luto, luto não fui capaz].
O signo, o fonema, o grafema. É cinema. [lembras-te?]
Técnica. Line-up. Out-line. Aprendemos muitas coisas. Planificações. Story-board.
Escrever cenas. Ordenar cenas. Inventar elipses. Alternar o dia e a noite.
[como se na vida real não fosse assim!]

Desejo + obstáculos = emoção.

Matemáticas de aparente equação fácil.
[talvez tenha começado a fazer estas contas muito cedo!]
Agora, vão para casa, leiam o jornal e inventem uma personagem. [queria dizer vida, mas disse jornal; lembras-te?]
A partir da notícia, inventem uma personagem e tragam-na já construída. [ele queria dizer vida. mas enganou-se, novamente e disse notícia. lembras-te?]
Única, com coerência, profundidade, acção. Narrativa. Transformação. Tensão.
Não se esqueçam que a personagem é mais do que aquilo que está ali, na história.
[se é! Se és. Muito mais do que nas nossas histórias. Agora ele acertou, o professor.]
E nós a aprender como se faz, como se filma.
E eu cada vez mais convicta de que os filmes são exactamente como na vida.
[menos quando precisas de um táxi com urgência, e esticas a mão...]
Nunca nada me parece de filme. Parece-me sempre tudo de vida!
E tenho motivos. Tantos motivos. A vida tem milagres. Milagres e assaltos.

Como se filma a minha vida sem esse dia de Janeiro?
Como se filma o nosso olhar a sintonizar-se num espanto?
Como se filmam as tuas asas a percorrer as nossas vidas?
Como se filma toda a ternura que pousas sobre nós?
Como se filma a minha vida sem os teus passos?
Diz-me.
Como se filma?

domingo, dezembro 20

a era MULTI


há por aí umas infra-estruturas, geralmente de betão municipal, que me fazem impressão.

já deram de caras com alguma. de certeza.

fui a Guimarães, jantar a casa de uns amigos. casa nova. onde fica?
- perto do pavilhão multiusos.

sinalética rodoviária indica o dito pavilhão. o multiusos.

o fenómeno não é recente.

eu não reagia assim ao prefixo multi. juro que não.

até o acarinhava. que sou de ciências sociais.

agora, desconfio dele absurdamente. e no que diz respeito ao multiusos, então, fico desvairada. tudo nos pode levar a estes locais onde tudo pode acontecer.

concertos, teatros, feiras diversas, comícios, circos, missas campais, exposições de longa e curta duração... enfim, qualquer evento cultural, comercial, desportivo, político...

uma monotonia. um desespero.

temo pela função dos lugares. temo pela [des] caracterização dos espaços.

arrepio-me só de imaginar que os teatros desaparecem, os templos desaparecem, os museus desaparecem, as casas da música desaparecem, os pavilhões desportivos desaparecem e, no lugar deles, surge, em cada vila, cidade, planeta, um multiusos gigante capaz de albergar tudo e toda a gente.

mais do que nunca estamos na era multi.

multiusos

multifunções

multifacetado

multidisciplinar

a ideia de muito, expressa pelo prefixo multi enerva-me. deixa-me ansiosa.

na tmn, dizia eu, [depois de o meu telemóvel dar de si]

- quero, por favor, um telemóvel. um telemóvel com o menor número de funções possível.

a menina “até já” olhava fixamente para mim. sem se mexer. os seus olhos diziam

- importa-se de repetir, sua louca alucinada?

- eu quero um telemóvel básico: que não dê para bater a sopa, que não dê para pintar os lábios, que não dê para secar o cabelo, que não dê para tirar café, que não dê para pendurar quadros. que não faça de GPS. um telemóvel convicto das suas funções de telemóvel. sem desvios de personalidade. sem comportamentos desviantes. tem algum?

temo pela proliferação do multi.

temo pela descaracterização dos objectos e dos edifícios.

temo pela função das coisas e dos lugares.

temo pela minha sanidade mental.

eu temo que o princípio do canivete suiço seja aplicado a tudo.
a tudo e a mais a alguma coisa.

terça-feira, outubro 13

a fé e a dúvida


Uma vez, há muito tempo, quando para mim as coisas simples ainda eram todas óbvias e ver televisão nas tardes de domingo era quase inevitável, retive a frase, no meio de um filme, do qual não recordo o título: “a fé só existe, porque existe a dúvida”.
Foi assim que vi revista e aumentada, a minha lista de axiomas adolescentes.
Então, a fé e a dúvida, pensei, coexistirão infinitamente.
Numa idade especialmente fértil em dúvidas, temi tornar-me monja, asceta, sei lá.
Isto caso as dúvidas fossem proporcionais à fé, claro.
Desligada do filme que, para mim, tinha terminado ali, naquela frase, emaranhava-me nos meus pensamentos pueris e lineares, condicionada, evidentemente, pela minha educação católica. E por outras vertentes do meu processo de socialização em curso.
A dúvida é condição de fé. E ia moendo aquilo à minha maneira.
À maneira dos meus catorze anos.
E pensei nas cruzadas e nas missões. Nos auto manos e nos bizantinos, no Concílio de Clermont e nas barbas grisalhas do professor de história que nos estava a ensinar aquilo tudo. E nada daquilo me fez sentido (e pensei mesmo em ir tirar satisfações com o professor) pois não concebia encontrar alguém que não tivesse dúvidas. Nem cristãos nem muçulmanos. Nem ateus nem agnósticos. Ninguém. Todos com dúvidas. Alguns com fé.
Logo, se as dúvidas eram certas, mais cedo ou mais tarde todos achariam a tal fé.
Era só uma questão de paciência, de esperar pelo tempo certo...
Pensava assim, retida naquele axioma novo, acabado de adoptar.
E, mais tarde, perguntei à minha mãe se tinha dúvidas. E ela perguntou-me sobre quê. Sobre alguma coisa. E ela disse logo que não. Sem vacilar.
Fiquei de rastos, porque achei que ela deveria ter imensas dúvidas. Íamos todos à Eucaristia dominical e, naquele tempo, para mim, ir à missa era ter fé. E, agora, pela frase do filme, sinónimo de ter dúvidas.
Lembro-me de todos estes pensamentos cruzarem no meu cérebro como jactos.
E, no domingo seguinte, dentro da igreja, pus-me a pensar em quais seriam as dúvidas de toda aquela gente. Olhava-os, tentando descortinar as dúvidas que teriam. E se teriam tanta fé como dúvidas. Ou se teriam mais dúvidas do que fé. E se não tivessem dúvidas nenhumas, também não precisavam da fé para nada. Mas não devia ser bem assim, porque a minha mãe disse que não tinha dúvidas e estava lá. E a fé era ainda algo que eu não sabia definir. Eu entendia o que era ter dúvidas porque as tinha. E achava que quando rezava tinha fé. E, afinal, pareceu-me evidente que tinha fé porque tinha dúvidas. E que talvez rezasse para as deixar de ter.
De resto não achava mais nada. Nunca tinha experimentado as consequências de ter ou não ter fé. Mas já tinha levado com as consequências de ter ou não ter dúvidas. A Eucaristia tinha chegado ao fim e, foi por esta altura que dei comigo a pensar numa tribo imaginária onde ninguém tivesse dúvidas de nenhuma espécie.
E não fosse à missa nem a nenhuma outra celebração.
Não duvidar de nada, nem de ninguém. Não acreditar em nada nem em ninguém. Viver.
Aquilo agradou-me especialmente e, não fosse a igreja estar repleta de gente muito mais velha teria defendido, para mim, que as dúvidas tenderiam a desaparecer com o passar dos anos. Mas não. Era evidente que não.
À noite, no diário de bordo da minha adolescência, registei uma historieta intitulada «existir sem dúvidas», longe de imaginar o quanto esse relato me faria sorrir de mim e das minhas estapafúrdias deambulações.
Uns anos mais à frente, ainda no liceu, cruzei-me com os primeiros filósofos e, já na universidade, com Mercia Eliade, Santo Agostinho, entre outros.
Kierkegaard foi o mais cirúrgico a mexer, novamente, no assunto da fé e da dúvida. Obrigando-me a uma nova revisão dos meus postulados adolescentes, quase adultos. Ainda adolescente, li com certa angústia, O Desespero Humano e nunca mais optei por nada nem por ninguém, sem uma certa inquietação. Às vezes nem me mexia. Só para não optar. Não dava resultado.
Depois, Nietzsche também deu cabo de umas tantas auto-evidências da minha existência. Uns de uma forma, outros de outra, foram diversos os autores que pulverizaram o meu modus vivendi. Tal como acontece hoje. Nunca mais as certezas foram as mesmas. Tirando uma ou outra. Evidentemente. E as dúvidas somavam-se – somam-se – numa equação interminável.
- Mas responde-me, deixa-te dessas considerações, responde-me
dizia-me ela impaciente.
- Tens fé, Isabel?
- Às vezes caio. Deixo-me cair. E, lá em baixo, não há nada. Nada visível que me ampare a queda.
imagem: ⓒ M&M's

quarta-feira, abril 22

António Gedeão e Herberto Helder


Sabes, Miguel, não gosto de António Gedeão como gosto de Herberto Helder.

Claro que não!

Como te disse, descobri António Gedeão com nove, dez anos, era ainda uma criança.

Foi na biblioteca. Descobri-o num livro. Num poema. Numa lágrima de preta.

E foram muitas descobertas numa.

Já tinha lido outros poemas. Nos livros lá de casa. No meu livro de português.

O meu livro de português tinha poemas que, ainda hoje, sei de cor e salteado, como nunca soube a tabuada.Tinha um poema pequenino, cinco linhas, talvez. E nessa altura - já te disse isto - eu achava que poemas eram poucas palavras a dizerem muitas, muitas coisas.

Nesse tempo, eu achava também que poemas eram escritos que adivinhavam coisas nossas. Talvez porque aquele poema - o do meu livro de português - tinha uma coisa que eu também tinha. E só eu sabia disso. E, então, pensei que poemas e segredos eram a mesma coisa.

Mas nunca um poema, por aquela idade, me soube tanto a palavras para dizer, como aquele, do António Gedeão.

Dei conta que as palavras faziam música.

Nunca um poema fora, para mim, palavras para ler em voz alta.

Depois de ler lágrima de preta, achei que um poema devia ser sempre sentido em voz alta.

E achei mais: achei que um poema era uma coisa útil. Tal e qual um objecto útil que nos facilita a vida. Foi, assim, com lágrima de preta. Descobri António Gedeão e foi com António Gedeão que descobri o que era um pseudónimo. E achei aquilo divertido. E descobri que, afinal, todos temos pseudónimos dentro de nós. Que revelamos ou não.

E, essencialmente, achei que ele fez bem, porque acho Rómulo um nome feio.

Foram muitas as descobertas. Tinha talvez dez anos.

Eu não gosto de Herberto Helder como gosto de António Gedeão.

Descobri Herberto Helder numa livraria. Num livro. Num poema.

Num não sei como dizer-te que a minha voz te procura.

E foram muitas descobertas numa.

Já antes tinha lido poemas. Nos livros, em minha casa. Nos livros das livrarias.

No meu livro de quinhentas e setenta e uma página de poemas, há um poema que me faz emudecer.Por isso, eu nunca o vou poder ler em voz alta. Só sentir.

É um poema que acontece, que teima em acontecer até ao milagre.

Daqueles poemas que mantêm segredos. Secretos, seguros.

Poemas com guelras. Poemas que adivinhavam coisas nossas.

Poemas raros de carne e rosa.

Poemas de muitas palavras, a fazer sentir coisas únicas.

Mas eu regresso sempre ao não sei como dizer-te que a minha voz te procura.

Foi com Herberto Helder que descobri a poesia toda.

E achei aquilo tudo. Terno. Eterno. Violento e voraz.

Mas nunca um poema, por aquela idade, me soube tanto a suor.

Dei conta que as palavras faziam amor.

Depois de ler não sei como dizer-te que a minha voz te procura,

eu achei que quem não o lesse, seria certamente infeliz.

Mas, depois, dei conta que isso de ser feliz ou infeliz é patético,

quando o assunto é aquele poema. E outros.

Foram muitas as descobertas. Tinha talvez vinte anos.

Imagem da livraria Lello: Zaclis Veiga
[texto editado em 2006, ano em que se assinalou o centenário do nascimento de António Gedeão]

terça-feira, abril 14

O lado esquerdo de uma mulher


Cara Isabel,
Ao ler este mail é essencial que tenha fairplay, como acho que tem. Mas é fundamental que não olhe para mim. E este momento é decisivo. Continue, por favor, mas não olhe para mim. Ficaria embaraçado, talvez. Apesar de eu, aqui na empresa, por força das circunstancias, ser o homem que mais longamente olha para si. Ou melhor, ser talvez o único homem que olha para o seu lado esquerdo oito ou mais horas por dia. Estamos a palmos de distância um do outro. Duvido, aliás, que alguém, alguma vez, olhasse para o seu perfil como eu olho, quase há quatro meses. Todos os dias úteis. E não é fácil. Olhar diariamente para o seu lado esquerdo, principalmente quando a janela que está à minha frente (do seu lado direito) deixa, a determinados dias e a determinadas horas do dia, passar uma luz que a desvenda, tantas vezes, sensualmente. Não me leve a mal. Mas é assim há quase quatro meses. E hoje resolvi-me a dizê-lo. Hoje, vou falar-lhe do seu perfil. Do lado esquerdo. Portanto, isto não é um mail de trabalho, como vê, é só destinado a si.

O sinal que tem, um pouco abaixo do maxilar, um tanto distante das maças do rosto é o primeiro que me chama a atenção. Consigo perceber, a veia que passa junto ao seu queixo e depois desaparece. O seu queixo tem um traço elegante. Gosto também do perfilar das suas pestanas, da ponta do seu nariz e das rugas de expressão que se distendem na sua testa como linhas de minas 0,5, às quais não consigo ver o fim. Quando sorri, as suas maças do rosto são a saliência mais sexy da sua face. Quando o usa, gosto particularmente do seu decote. Como imagina, é o perfil do seu seio esquerdo, que melhor conheço. Faz-me sempre lembrar de um trecho que li cujo o autor, nesse momento, nunca me vem à memória.Quando traz uma camisa de linho, a luz, deixa perceber ligeiramente o seu soutien. Há um cuja cor não consigo determinar. Mas é escuro. Não é preto. Percebem-se os tons.
Acho graça à forma como as migalhas das bolachas, quando as come à secretária, caem no seu decote. E sempre que bebe o iogurte líquido fico na expectativa de a ver com um bigode branco. Mas nunca aconteceu. Gosto muito do seu pescoço e, nestes quatro meses, nunca a vi sem brincos. Daqui, da minha secretária, o seu pescoço pede beijos. Sabia disso? Porque é liso e parece muito macio. Como se chamará o seu perfume, que nem sempre usa, e cujo o aroma se intensifica aqui, do lado esquerdo.
Gosto das suas mãos. A esquerda, é a minha preferida. Ao contrário da minha, não tem aliança. A que observo melhor, é a esquerda. Que surpresa. As unhas são perfeitas e, às vezes, a cor com que as pinta, combina com o seu batom. Penso em quais serão os desejos atados no seu pulso esquerdo, na fita do Senhor do Bonfim. Gosto da forma como desentala o cabelo, quando veste o blaser. Fico aqui a observar o seu lado esquerdo, enquanto o veste, quase sempre, em frente à sua secretária. Gosto das pontas desalinhadas do seu cabelo do lado esquerdo, da forma como o tenta arrumar para o lado direito, com a mão direita. Raramente usa a esquerda.
Gosto da forma como de vez em quando sorri para o seu computador. Gosto também de a ver séria. E já reparei que só fala ao telefone, do lado esquerdo. Às vezes, quando a sua cadeira desliza na direcção da minha secretária ouço sem querer as suas conversas. Ouço nitidamente a pessoa que está do outro lado, a falar ao seu ouvido esquerdo. Quando a cadeira desliza para traz, cruza a perna direita sobre a esquerda, raramente o inverso. E quando analisa papeis, por momentos, deixa a mão esquerda pousada sobre a haste esquerda dos seus óculos. Infelizmente, raramente vejo as suas pernas. Nem a esquerda, nem a direita. Da cinta para baixo, bem que podia ser uma sereia, que daqui, não vejo. Ainda bem que não é.
Um pouco acima do seu cotovelo esquerdo existe uma disposição interessante de sinais. O seu ombro esquerdo…tanto que eu poderia dizer sobre o seu ombro. Foram muito poucas as vezes que em todo este tempo vi os seus ombros descobertos.Poderia dizer outro tanto sobre o seu lado esquerdo. Mas começo a achar-me um imbecil. Só espero que não pense que os homens são todos uns sacanas. Não. Não são todos. Os piores talvez sejam os mal - casados como eu. E os mal-amados como tantos. E agora pode apagar este mail e fazer de conta que não o leu, que não lhe chegou. Ou, passar a tratar-me por tu e dizer: António, não queres ir ali ao bar tomar um café? E, com inteligência, pode pôr-me no meu lugar. E talvez eu deixe de observar, tão obstinadamente, o seu lado esquerdo.
imagem: Eduardo Cambuí Junior
[apesar de escrito em 2005, dedico este texto ao Paulo, meu professor, pois foi este um dos textos que me abriu as portas para o curso e, muito, tanto, tudo importante, me permitiu conhecer pessoas absolutamente maravilhosas. Com quem aprendi e aprendo muito.]

quinta-feira, março 26

Amar o mar


Guardo o teu olhar inteiro. Não quero nem suporto mais nada.

Mais é demasiado. Para sentir.

Se um dia estiveres não sei onde, estarás tão perto de mim quanto agora. Porque estares ao meu lado sem que sinta a tua mão na minha, é o mais longe e distante que conheço.

Nenhum tempo, se quisermos, desbota o nosso quadro azul.

E o essencial do que te quero dizer já o deixei em ti. E é bom e branco e único.

Porque te amo como quem ama o mar. Não o vejo. Não me pertence.

Posso nunca mais ver o mar. Mas já o senti na pele.

E só por isso vou amá-lo toda a vida.
imagem: autor desconhecido

sexta-feira, março 20

É segredo?




Faltavam dez dias para o meu exame de condução. O meu primeiro instrutor – Senhor Silva - era uma homem baixinho, miudinho, de bigodinho, a contar os dias para chegar à reforma. Estava quase. E usava sapatos Ecco, algumas vezes utilizados para travar os meus ímpetos rodoviários.


Na nossa primeira aula fez questão de me explicar teórica e minuciosamente como funcionavam as mudanças e o motor do carro. Depois as aulas foram iguais. Mais rua, menos rua, bem nos arrabaldes da cidade, longe da confusão. Depois, ao fim-de-semana, auto-estrada, via de cintura interna, marginal da Foz do Douro. Um dia comentei: o meu instrutor, ao sábado, faz-me conduzir até à Foz, manda-me parar o carro e sai. Regressa vinte minutos depois e a aula está no fim. Deve andar indisposto, com algum problema, pensava. Eu enfiada no carro. Ele a caminhar, lentamente, mãos atrás das costas. Entrava, cabisbaixo e dizia: siga.


- Ou conduz muito mal e o instrutor enjoa e tem de ir apanhar ar ou algo está errado nessas paragens na Foz, disseram-me, os funcionários, entre-olhando-se. Parecia um episódio familiar na secretaria da Escola de Condução. Acreditei, piamente, na primeira hipótese. Desanimei.


- Vamos trocar de instrutor. Peça isso, por escrito, que é melhor. Como se fosse iniciativa sua. Está a compreender? Vá por mim. É melhor, dizia-me a Senhora Dona Odete, levantando as sobrancelhas, acima do aro dos óculos. Acatei o conselho e, na aula seguinte, aparece-me um Senhor Fernando, alto, moreno, todo perfumado. Vivaço nas palavras e nos gestos. Por momentos, achei que íamos entrar numa corrida de automóveis, dada a sua determinação e genica. Gostava do que fazia. Notava-se ao longe. Mesmo ao longe.


-Ora vamos lá. A ver o que vale. Cinto. À direita. As indicações telegráficas continuaram. Até ao momento de estacionar, numa descida, entre dois carros. Transpirei por tudo quanto é poro. Não imaginava como fazer aquilo. O carro iria para todo o lado, menos para trás. Menos para aquele lugar balizado por dois automóveis!


- Então! Vamos lá. Quando é o exame?


- Daqui a dez dias, respondi, voz sumida, nervosa.


- Nem daqui a dez semanas, menina! Então não consegue estacionar o carro?


No fim da aula, o Senhor Fernando fez o diagnóstico: eu só sabia andar para a frente. Logo, ou eu estava disposta a um esforço suplementar ou era melhor desistir do exame. Nos dias seguintes fiz a recruta rodoviária. Aulas extra. Sobe, desce, estaciona. Estaciona, sobe, desce. Trava, arranca. Arranca. Trava. Subidas, descidas, rotundas, cruzamentos, pleno engarrafamento. Realmente, eu tinha andado afastada do trânsito. Preparavam-me, talvez, para conduzir no deserto. Um dia, foi a vez dos seus sapatos clássicos, gastos mas reluzentes, nos travarem o meu arranque ainda no sinal vermelho!


- Então, onde está com a cabeça?! A seguir, vire à esquerda.


Virei. E o Senhor Fernando, inclinou a cabeça na direcção do meu ombro, baixou a voz e perguntou, quase sussurrando: é segredo?


- Como? Perguntei, esforçando-me para não tirar os olhos da estrada.


- Se é segredo? Perguntou, agora, em tom normal.


- Se é segredo o quê, Senhor Fernando?!


- Que viramos à esquerda. Que vamos aqui, em missão secreta...


- Não... Sr. Fernando.


E, levantando a voz:


- Então porque não fez pisca?


E sempre que eu me esquecia de dar o sinal indicador de mudança de direcção, o Senhor Fernando perguntava: é segredo?


E quando ele não perguntava e eu me esquecia, afirmava: não, não é segredo, Senhor Fernando. E sorríamos cúmplices, ao ritmo intensivo de um treino exigente. Já nos últimos dias, o Senhor Fernando começou a falar da sua Laurinda, com ternura. E ao sábado de manhã, deixei de ir para a Foz. Íamos ao seu bairro. Da janela do carro, acenava para a janela do sexto andar.


-É a minha Laurinda. Dizia-me, sem segredos, como se fosse incapaz de se exaltar.


No dia anterior ao exame, berrou comigo como nunca. E eu, como nunca, nem conseguia por o carro a trabalhar! Na manhã do exame, disse-me: vá lá a fazer isto, caramba! Não esqueça: aqui não há segredos. E não houve. Fiquei tão bem treinada que, ainda hoje, faço pisca dentro da minha garagem! No parque de estacionamento! Fá-lo-ei no deserto.


Pois, então, se não é segredo!




imagem: jac.opo

terça-feira, março 17

Sonhos sinalizados e outras desventuras



Tirar a carta de condução foi, sem ironia, das coisas mais difíceis que já fiz na vida. Não a tirei aos 18 mas sim muitos - vá, alguns - anos depois e em circunstâncias quase secretas que não interessa agora explicar. Recorrendo às siglas da História, a minha vida pode dividir-se num a.c e num d.c – antes da carta e depois da carta.
Antes da carta, por exemplo, fui chamada, após me ter candidatado a novo trabalho.

- Parabéns. Foi a seleccionada. Vamos agora acertar o seu vencimento. Contas feitas, não fica a perder, pois, optamos por lhe atribuir uma viatura da empresa, diz-me, o director geral.Tentei, por diversas vezes interromper, enquanto ele divagava sobre a marca do carro, a rodagem do carro, o motor do carro…

- Desculpe, disse, levantando o dedo, como se estivesse na sala de aula! Eu não tenho carta por isso não preciso do carro.

Dez minutos após ter sido demitida fui despedida! Verdade.

- Inimaginável. Está a brincar comigo! Como é que não tem carta, perguntava o director, braços no ar, colérico, quase aos berros!

- Como é que não tem carta? Explique-se!

Em nenhuma linha do meu CV diz que tenho a carta de condução, disse-lhe, advertindo-o para o facto de me estar quase a gritar. Tinha o direito de se indignar, mas de me gritar, não. Levantei-me para me ir embora, deixando-o a falar sózinho.

- Espere aí. Por favor. Desculpe.Vamos lá negociar isto, novamente. Mas tem de tirar a carta. Mas como é que não tem carta?

Anos, muitos anos mais tarde, após este episódio, em circunstância quase secretas fui tirar a carta. Converteu-se numa questão de vida ou morte. Também numa questão de honra. E a honra, como sabemos, é uma questão antiga e muito séria na vida das comunidades e das pessoas. Não foi a condução que me custou. Foi o código. O código da estrada conseguiu deixar a minha auto-estima de rastos. Um dia, no fim da aula, o técnico perguntou: alguém tem dúvidas? Levantei o dedo, mais uma vez como na aula! Muito senhora da minha pergunta.

- Porque é que este sinal se chama Cruz de Santo André?

A gargalhada geral, estridente, reduziu-me a alcatrão. Senti-me uma nódoa. Uma nódoa com dúvidas. Mas uma nódoa. Fui aconselhada a não fazer perguntas. Que decorasse. Aquilo era uma questão de decorar. Mais nada.

- Ninguém quer saber porque se chama assim. Ensino o código há mais de vinte...vinte anos e nunca me fizeram essa pergunta! Decore. Intressa lá o porquê do nome da cruz!

E, caso não acreditasse em milagres, tinha motivo para me converter. Lá consegui induzir a cartilha. O vulgar pisca é «um sinal indicador de mudança de direcção». O eixo da faixa de rodagem, «é uma linha longitudinal, materializada ou não, que divide uma faixa de rodagem em duas partes, cada uma afecta a um sentido de trânsito». A auto-estrada é «uma via pública destinada a trânsito rápido, com separação física de faixas de rodagem, sem cruzamentos de nível nem acesso a propriedades marginais, com acessos condicionados e sinalizados como tal». E a todas estas definições juntou-se uma panóplia de significados que, naquele período, abalaram, obviamente, o meu mundo! Até os meus sonhos. Neles passaram a mover-se automóveis, motociclos, moto cultivadores, quadriciclos, ciclomotores, tractores agrícolas, velocípedes, tractocarros e reboques. Até o triciclo da minha infância deixou de ser encantador! A matéria onírica expandira-se. E, literalmente, os meus sonhos eram sinalizados por cruzes de Santo André e afins. Eu. Eu que nunca tivera sonhos sinalizados! Ele era contra-ordenações graves e muito graves. Toda a espécie de coimas! Cilindradas superiores e inferiores a 50 cm3! Ele era taras e pesos brutos, pontes, túneis e velocidades. Um conhecimento inútil e sofrido. Muito duro.
Até ao dia em que me sentei, pela primeira vez, ao volante de um carro – sim, poderia voltar a chamar-lhe simplesmente carro – e, feliz, passei a ponte da Arrábida, comigo ao volante. Quando, a dez dias, do exame de condução descubro - quer dizer - descobriram... que só sabia conduzir… para a frente... e mudei de instrutor...
- Quem é o seu instrutor?
[a saga continua... escrito em 2005, a propósito do novo código da estrada]

quinta-feira, março 5

Marilyn leu Ulisses?


Um querido amigo - um querido amigo? - não, um queridíssimo amigo, oferereceu-me, pelo aniversário, o livro «Mulheres que lêem são perigosas». Na página 147 encontra-se esta fotografia de Marilyn a ler Ulisses. O texto que acompanha a fotografia de Eve Arnold, reza assim:
«A pergunta é quase inevitável: "Ela leu ou não leu?" Marilyn Monroe, a sex symbol loura do século XX leu o Ulisses, de James Joyce, um ícone novecentista da cultura intelectual e o livro que é para muitos o maior romance moderno, ou estava apenas a fingir?
Porque, como atestam outras imagens da mesma sessão fotográfica, é o Ulisses que Marilyn a ler aqui. Richard Brown, um professor de literatura, quis tirar o caso a limpo. Trinta anos depois da sessão fotográfica, escreveu à fotógrafa, que devia saber a resposta. Eve Arnold respondeu que Marilyn já estava a ler o Ulisses quando se encontraram. Marilyn tinha afirmado que lhe agradava o estilo do livro; que o leria em voz alta para o compreender melhor, mas que era difícil. Antes da sessão, Marilyn estava a ler o Ulisses enquanto Arnold preparava a película. E foi assim que ela foi fotografada. Não precisamos alimentar a fantasia do professor e imaginar que Marilyn continuou a ler Ulisses, se matriculou numa faculdade e abandonou a sua vida de estrela de cinema para aprofundar os seus conhecimentos acerca de Joyce e que, já como professora reformada, recordou os dias fascinantes da sua juventude. Mas podemos seguir os conselhos do professor e ler o Ulisses como Marilyn fez: não de seguida, do princípio ao fim, mas episodicamente, abrindo o livro em páginas diferentes e lendo pequenos trechos. Talvez chamássemos a este modo desorganizado de ler o "método Marilyn". Seja como for, o professor Brown recomenda-o aos seus alunos.»

[...eu nunca o li, confesso... mas também o professor Brown, nunca foi meu professor.]
Imagem: do meu livro

quarta-feira, março 4

Apanhar um taxi...ou a arte de... hailing a taxi...


Quando se trata de apanhar um táxi no meio da rua, geralmente, nunca me acontece como nos filmes! Bem que estico a mão, o pé e nada! Nunca aparece um disponível, logo ali! A primeira vez que me aconteceu, pasmei. E ainda não sabia que estava para pasmar muito mais. Foi em Lisboa. Olhei para o lado esquerdo, estiquei a mão e o táxi parou logo ali. Esse dia foi de filme. Tão de filme que o motorista desse mesmo táxi foi detido 15 minutos depois! Assim, tipo sair da viatura à força e mãos atrás das costas! Dois carros de polícia um taxista e eu... e eu incrédula a pensar que era para os Apanhados. Eu à procura de uma câmara, para dizer, com um adeus envergonhado, "isto é só a brincar, mamã! Não te aflijas!!!" Mas era a sério. O polícia a mandar-me sair do carro. Saia, saia. Desculpe o incómodo. Mas saia. Que corria perigo... e eu a sair, atónita a pensar porquê a mim e a responder-me, como sempre, porque sim. Se não fosse a ti era a outro qualquer! Entretanto o Alfa já teria partido e eu rua Augusta fora, ou rua do Ouro ou outra qualquer, por ali fora. A pensar, a beliscar-me. À beira de um ataque de nervos. Nesse dia, lembro-me claramente, contra todas as previsões, cheguei ao Porto de avião! Foi, talvez, há cinco anos.
Isto para registar, imaginem só, que ontem, em Lisboa, pela segunda vez na vida, estiquei a mão, como nos filmes, e o taxista parou de imediato.Passados 15 minutos, nenhum carro da polícia nos perseguia e, o motorista, não foi detido. Nem eu ia para Santa Apolónia. Ontem, entrei no táxi para fazer uma viagem um pouco maior. E o taxista ouvia Antena 2. E perguntou se aquela música me incomodava? E eu, que não, que não, que até lhe agradecia. Que gostava. E ele a falar de música clássica. A mostrar-me, com delicadeza e certa timidez os seus discos de música clássica e a falar de Mozart. Com sabedoria. E a perguntar-me se podia pôr um disco, já que eu gostava...e se podia pôr mais alto. E eu que sim. Que podia. E a música toda dentro do carro, os vidros fechados e cristalinos. E Lisboa lá fora, aberta, carregada de gente em trânsito...como eu. Como nos filmes...
Imagem: Liv Tyler; Candid photos

quarta-feira, fevereiro 25

Ilhas: lugares extremos


Infelizmente não me acontece muitas vezes. Daquela vez calhou bem. Li Crónicas do Porto Santo, da editora Campo das Letras, no Porto Santo! E, apesar de a praia não ser o meu local de eleição para ler - nem pouco mais ou menos - gostei de o fazer, ali, na areia dourada.
[que saudades daquele mar, que absolutas saudades...daquela água]
Crónicas do Porto Santo «é o lugar onde a história se cruza, e se enriquece, com a ficção».
«Descobri que, em tempos, houve um caracol malhado, perdido de amores por uma caracolita de casta menor, romance que acabou em tragédia, mas não impediu os sonhos...(...) Descobri, ainda, de forma encantadora que «para os que vivem embarcados, a ilha constitui uma parábola concentrada na vastidão dos continentes. Cabe nela fatalmente o mundo inteiro. É por isso que, num fim-de-semana alargado, no Porto Santo, as famílias se passeiam longamente pela estrada que liga à Calheta da mesma maneira que no Continente se percorrem dezenas ou centenas de quilómetros para visitar outra cidade ou país longínquo. Combinam-se piqueniques na Terra Chã como lá se preparam excursões à Serra da Estrela. Por paradoxo, quanto mais pequena for a ilha, maior a dimensão relativa das suas ocorrências: o mundo inteiro sabe quem nasce, quem casa, quem morre. Por certo tudo se passa ao pé da porta, com um vizinho ou parente. É precisamente isto que faz das ilhas lugares extremos. Amados ou odiados. Espaços de convivência e de infinito horizonte ou, pelo contrário, sítios exíguos e fechados, claustrofóbicos becos sem saída onde todos se espreitam de forma doentia ou ignoram prudentemente, sustentando uma máscara de papelão. Num caso ou noutro, não se vive impunemente a insularidade. (...).» Gostei de ler José Maria Cibrão Campinho. E as suas Crónicas do Porto Santo, no Porto Santo.
[à queridíssima WOB. Ela sabe porquê.]

sexta-feira, fevereiro 20

O nome das maças


Quando acabei de o ler, já tinha entrado na máquina do tempo que me transportou para longe e me demorou por lá. Memórias olfactivas que despertam afectos. E fazem sorrir. Ainda que ninguém possa adivinhar exactamente o quanto o passado nos contrói, sei intimamente e com absurda clareza o quanto foi decisivo, para ser assim. Assim, hoje. Assim, eu. É uma historieta que nunca contei. Risível. Disparatada.Vivi parte da minha infância a pensar que as maças bravo de esmolfe, se chamavam bravo de esmofo! E achava estranho que maças de aroma tão agradável tivessem aquele nome que me remetia para o repelente odor a mofo! E mais. Acreditei durante alguns anos que a avó Clotilde não sabia dizer mofo e dizia esmofo! E, afinal, a avó Clotilde sabia tudo. Até o nome das maçãs. Não havia meio de atentar na fonética da palavra. Nunca a tinha visto escrita. Bravo de esmolfe era, para mim, uma só palavra, uma palavra apenas para se dizer. Era uma palavra da avó Clotilde. Era o ingrediente divino da compota de maçã mais especial do mundo. Era sinónimo de cesto pequenino, ovalado, que a avó me dava para ir com ela à Lamela. Quando a avó Clotilde morreu eu tinha nove, dez anos. Mas ainda hoje guardo na memória, o seu sorriso terno e triste. E as suas mãos morenas no meu rosto.
Cheiram a maças. A estas maças. E a palavras que nunca saberei dizer.

quinta-feira, fevereiro 19

Ladrar em línguas diferentes

Já aqui disse [por acaso, aqui, ainda não disse] que adoro banda desenhada. É verdade. Também ainda não tinha dito que simpatizo bastante com a palavra onomatopeia. Outra verdade. Desde o momento em que a aprendi, há muitos anos, na escola primária. Foi amor à primeira leitura, ainda eu não sabia o que ela queria dizer. Nesse tempo tínhamos um caderninho de significados. O meu tinha capa cor de laranja e, ao centro, a letra desenhada a negro, dizia: significados. A professora marcava o TPC [trabalho para casa] e, um dos mais frequentes consistia em ler um texto e apontar os significados das "palavras difíceis". Depois, tínhamos de procurar no dicionário o que queriam dizer e qual a sua categoria gramatical. Esse TPC encantava-me. Adorava descobrir o que as palavras me tinham para contar. Era assim como encetar um diálogo com alguém e gostar ou não gostar, só pelas primeiras impressões. Às vezes injustamente. Mas era assim. E quando eu gostava da palavra, não me demorava na procura de palavras da mesma família, antecipando, sem essa intenção, outros TPC`s. Enfim… Foi assim que, pelo caminho, me enamorei da palavra quântico. Como gosto dela! Mas não é minha intenção, apanhar este atalho para vos falar do cerne deste poste: ONOMATOPEIAS. Caninas! Estamos, então, a falar de palavras cuja pronúncia imita o som próprio, natural, da coisa significada; figura de retórica pela qual se procura sugerir uma imagem auditiva. Isto para vos dizer que, só há poucos anos, descobri que os cães [bem como outros animais] ladram [expressam-se] em diversos idiomas! Assim:
Alemanha: vow, vow; Argentina: gua, gua; Colômbia: guau, guau; Estados Unidos: ruf, ruf; França: whou, whou; Japão: won, won; Rússia: guf, guf; Tailândia: hong, hong.
São alguns exemplos dados por um tradutor com quem conversava e que, com graça, me dizia, apontando para o livro, um original noutra língua: está a ver aqui, não é um cão mariquinhas, é apenas um cão francês!