terça-feira, novembro 23

Se eu te mandasse atirar de uma ponte

Se eu te mandasse atirar de uma ponte
atiravas-te?
claro
porque a água era límpida e tinha um tesouro no fundo
mas se fosse um viaduto?
é evidente que caía no colo de uma bruxa que me raptava
e tu ias
[buscar-me e tiravas-me do caldeirão e isso tudo
isso tudo?
pois
isso tudo
contigo é isso tudo
se me mandas morrer
vivo
se me fazes sofrer
é sem dor
se me traíres
vai ser contigo
se me amares
é com outro
dás-me um chuto
e vou de ioió
e se o cordel sair
volto num pião


não há maneira
não há forma
não há jeito


vou voltar para ti mesmo que não queiras
mesmo que não gostes
mesmo que não existas
mesmo que me finem as forças
mesmo que sejas a imagem de um filme a preto e branco em que eras o cinzento]


e não te conheço
e não te mereço


mas amo-te e isso basta
não basta?
basta
não basta?
o amor chega
não chega?
ou queres que leve flores?

João Negreiros, in O Cheiro da Sombra das Flores, pag.71 e 72, 2007


[parabéns querido João Negreiros. Tudo de bom hoje e sempre... e muitos, muitos mais poemas]

domingo, outubro 24

Poema de João Negreiros

Este poema do João Negreiros está em votação. Por favor, ouçam-no aqui e votem. Muito obrigada. A votação termina amanhã. E o João é o único poeta português no concurso.

segunda-feira, março 15

O mar que a gente faz


Os dias passam e eu estou quase a ser maior. A mãe põe um calendário que nesse mês tem uma flor azul a contar os dias até ser grande e eu mal posso esperar para que a flor caia. O calendário está na cozinha e eu também a riscar, todos os dias, o que me falta. A mãe e o pai já me perguntaram o que eu queria para os anos e eu respondi:

- Qualquer coisa.

Eu sei que não é real um menino não querer as coisas todas, mas eu sou assim... e só quero uma: ser grande para poder ganhar guelras como o Lito e o pai e não ter medo do mar nem das coisas que lá andam.

O dia vai calhar no fim-de-semana. Acho que vai...acho que vai...acho que vai...calhou.

É um sábado. Acordo na minha cama, a que também faz as vezes de sofá. O Lito dorme como quem ressona sem sonhar,parado como um morto. O pai e a mãe não se ouvem. O relógio marca as horas, mas não as sei ver, mas pelas frinchas do sol muito morno deve ser cedo, muito cedo. [...]


João Negreiros in O Mar que a gente faz, pag. 71, Camões e Companhia

sexta-feira, março 5

Hoje, nas livrarias




o Outono visto pela janela


na casa onde nasci havia sons e cheiros meus
as pessoas que os tinham emprestavam-mos à memória
e eu incluía-os como amigos íntimos
nesta não tem gente
ou se tem não têm cheiro
nem som porque eu não me lembro
gastei toda a memória nas pessoas antigas
e o espaço para as novas é um T1 que fica muito para além do T
onde eu estou sem visitas
fechado à medida de não deixar entrar
preciso do que já foi como do próximo ar para me lembrar que foi bom
eu já fui bom
agora não sei
mas já fui
juro que fui
e quero gastar as únicas energias a fazer manutenção às memórias
p’ra que nenhuma se perca
era pena
é que até a gente que me fez por dentro como a um cofre já não existe
e quero mantê-los ligados à máquina para sempre
e a máquina sou eu
e para sempre sou eu
anda
aconchega-te no mofo do T1
finge que és de antigamente para te dar os beijinhos de quando era pequenino
cheiras à minha avó
à roupa no estendal
à canção do fim dos bonecos
ao banho que está a ficar frio
ao grito do granizo do dia mais longo em que a casa esteve para cair
tu cheiras e sabes ao dia em que a casa esteve para cair
que foi no mesmo dia em que resistiu
como se estivesse ali desde o início dos tempos
e os tivesse começado para eu os acabar
acabar
acabar
acaba comigo que me falha a lembrança
e restas-me como a folha que esteve para cair
e que só não caiu porque o mundo acabou antes do Outono


João Negreiros in a verdade dói e pode estar errada
Colecção Camões & Companhia da Saída de Emergência

terça-feira, janeiro 12

poesia de João Negreiros no TUM


[clicar no cartaz para aumentar]
diz assim:
«Depois do grande sucesso de “Inspiração é Respirar”, o Teatro Universitário do Minho aborda de novo o imaginário lírico de João Negreiros. O espectáculo é uma fusão de poemas antigos e inéditos. O naturalismo, a emoção aliados à dimensão sonora da poesia dão a toda a performance uma sensação visceral e palpável, aproximando os poemas dos anseios, medos e problemáticas do próprio público.
É um espectáculo alegre e soturno, épico e intimista, hilariante e dramático. As vozes de tessituras diferentes fornecem uma paleta sonora muito abrangente dando cor e alma à literatura que já de si a possui. Momentos únicos com os quais o público se identificará.
É a poesia para pessoas primeiro e para poetas depois.
É a poesia para pessoas primeiro e para leitores depois.
É a poesia para pessoas primeiro e para pessoas agora.»

sexta-feira, novembro 20

grandes poemas para viagens pequenas

retirado do blog do autor. aqui.

quinta-feira, outubro 8

esta espera que é para já

segunda-feira, setembro 14

o Outono visto pela janela


na casa onde nasci havia sons e cheiros meus

as pessoas que os tinham emprestavam-mos à memória

e eu incluía-os como amigos íntimos

nesta não tem gente

ou se tem não têm cheiro

nem som porque eu não me lembro

gastei toda a memória nas pessoas antigas

e o espaço para as novas é um t1 que fica muito para além do t

onde eu estou sem visitas

fechado à medida de não deixar entrar

preciso do que já foi como do próximo ar para me lembrar que foi bom

eu já fui bom

agora não sei

mas já fui

juro que fui

e quero gastar as únicas energias a fazer manutenção às memórias

p’ra que nenhuma se perca

era pena

é que até a gente que me fez por dentro como a um cofre já não existe

e quero mantê-los ligados à máquina para sempre

e a máquina sou eu

e para sempre sou eu

anda

aconchega-te no mofo do t1

finge que és de antigamente para te dar os beijinhos de quando era pequenino

cheiras à minha avó

à roupa no estendal

à canção do fim dos bonecos

ao banho que está a ficar frio

ao grito do granizo do dia mais longo em que a casa esteve para cair

tu cheiras e sabes ao dia em que a casa esteve para cair

que foi no mesmo dia em que resistiu

como se estivesse ali desde o início dos tempos

e os tivesse começado para eu os acabar

acabar

acabar

acaba comigo que me falha a lembrança

e restas-me como a folha que esteve para cair

e que só não caiu porque o mundo acabou antes do Outono


João Negreiros in arranha os céus e chove
imagem: Google

Prémio Nuno Júdice para João Negreiros

“Parece tudo muito simples, sem qualidades, digamos assim, para usarmos uma expressão que já faz parte do nosso aparato crítico contemporâneo, mas não é", afirmou o Professor Doutor António Manuel Ferreira, da Universidade de Aveiro, acrescentando que “um homem que manifesta uma relação tão sincera com a língua portuguesa só pode ser um verdadeiro poeta. E dizer isto é, para mim, dizer tudo”.

Foi assim que o Professor se referiu à poesia de João Negreiros, vencedor do Prémio Literário Nuno Júdice, com a obra arranha os céus e chove, explicando que “para situarmos estes textos na sua genealogia ético-estética temos de recuar no séc. XX e revisitar alguns textos essenciais de Fernando Pessoa, nomeadamente, as desalentadas confissões de Álvaro de Campos”. Os poemas de João Negreiros, prosseguiu “integram-se em pleno direito num dos trilhos mais vitais da Poesia Portuguesa.” São magníficos, disse, após ter lido alguns excertos.
imagem: sessão de entrega do prémio na Universidade de Aveiro retirado do blog do autor

domingo, setembro 6

Logo à noite, no Clube Literário do Porto, às 21 horas


Os filhos dos outros portam-se bem à mesa
Se cada vez que der um gole de água pensar nisso vou ter de pensar em muitas outras coisas e isso leva-me, a pouco e pouco, a pensar em tudo. Então, em vez de ser um ser, vou ser uma fábrica de ângulos… de pontos de vista que não vão estar certos porque vão ser só mais uma unidade que faz parte das múltiplas possibilidades de análise que rodeiam a nossa vida e a vida dos que nos rodeiam.
A loucura, ou o início dela, é isso, é o momento em que começamos a pensar… a partir daí é sempre a cair de forma sossegada como quem engole chicletes na montanha russa. A loucura é a incapacidade que temos de parar de pensar.
A loucura é o som que nunca ouvimos até ouvirmos, a pessoa que não temíamos até tremermos, a corrente que levávamos no pescoço até sabermos que era de ar… e dá-nos um arrepio daqueles… ou um dos outros… se decidirmos entrar na vida de outra pessoa e analisar a infelicidade pelo ponto de vista de alguém a quem não conhecíamos as maleitas… até passarmos a conhecer. E, quando damos conta, contamos-lhes as dívidas e os trocos, sabemos-lhes os defeitos e as injúrias de alcofa, beijamos-lhes os filhos como nossos, o sangue como morcegos, a sina como ciganos e nós somos eles… e todos.
Mas, quando nos aborrecemos, voltamos para casa… para deixar de sofrer muito com a vida dos outros e passamos a sofrer um bocadinho com os nossos. É que os nossos filhos são mais feios… a nossa mulher é mais gorda… os nossos pais estão menos mortos… os problemas dos outros, dos outros que fazem parte da raça sem sermos nós, são nobres, os outros são heróicos, os outros passam na televisão, os outros choram sem soltar ranho, morrem sem borrar as calças… e as dívidas de jogo são porque tiveram um descuido, uma hesitação, uma fraqueza… nós não…. nós somos descuidados, hesitantes, fracos e nós não gostamos nem um pouco de nós porque queremos passar as tardes em casa do resto da raça a ajudar a raça a sentir-se melhor com ela própria. Nós queremos passar as tardes a jogar às cartas em casa do resto da raça humana e elogiar-lhes as cortinas… e os dentinhos de leite dos rebentos… enquanto os nossos filhos crescem órfãos, os nossos irmãos não nos conhecem, os nossos pais morrem de solidão nos asilos, os nossos cães morrem à fome no beco do caminho para as férias… e a nossa empregada não recebe subsídio de Natal… e o nosso peixe não tem quem lhe mude a água… e a nossa roupa fede porque não quisemos tomar banho. E por isso tudo fedemos a falhanço e levamos eternamente o rosto da derrota dos que se deixaram ficar… dos que não gostam de si… nem do que sai de si…
E que é feito de si?... está com tão bom aspecto… e a sua senhora… está boazinha?… há que tempos que não os via…
João Negreiros in a verdade dói e pode estar errada
imagem: "o poeta" Chagall

quarta-feira, setembro 2

Inspiração é respirar


«A poesia de João Negreiros na voz do elenco do Teatro Universitário do Minho
Espectáculo e percurso antológico da poesia de João Negreiros que tem como objectivo traçar uma rota que vai desde as suas tendências Neo-Surrealistas até à lírica mais conceptual e sonora. A interpretação dos actores visa ser oral, naturalista e inovadora, tornando a literatura mais óbvia, mais universal e mais acessível. É um espectáculo de emoções extremas e dos sentimentos mais íntimos e guarda os momentos mais carinhosos que só se partilham com os amantes, os amigos e o público.»


Próximos espectáculos:

Vila Real, Casa de Pasto Chaxoila, 4 de Setembro às 21h30
Porto, Clube Literário do Porto, 6 de Setembro às 21h30
Braga, Livraria Centésima Página, 8 de Setembro às 21h30
Braga, FNAC do Bragaparque, 10 de Setembro às 21h30
Coimbra, FNAC Fórum, 12 de Setembro às 17h00
Porto, FNAC Norteshopping, 16 de Setembro às 21h30
Vila Real, Associação Espontânea, 19 de Setembro às 21h30
Lisboa, FNAC Chiado, 20 de Setembro às 17h00
Guimarães, Livraria do Centro Cultural São Mamede, 21 de Setembro às 21h30
Porto, FNAC Santa Catarina, 22 de Setembro às 18h30


Mais informações:
Teatro Universitário do Minho
Telemóvel: 965530263

sexta-feira, julho 24

As 5 musas de João Negreiros

Ler sobre o espectáculo aqui
As cinco musas de João Negreiros [e + uma, invisível, nesta imagem :)] continuam por mais duas noites a dar voz ao espectáculo INSPIRAÇÃO É RESPIRAR! A não perder!
De 21 a 25 de Julho, às 21h30.
Local: Auditório do T.U.M., Rua do Farto, Braga (junto às Frigideiras da Sé).
Bilhete: 3,50€ (estudantes/sócios TUM/AAUM) 4,50€ (adultos)Reservas: 96 55 30 263
Teatro Universitário do Minho

quarta-feira, julho 22

Dose da fatia de um doce


Dá-me um bocadinho do teu amor todos os dias
Não mo dês todo hoje que amanhã vou precisar dele outra vez
eu sei conheço-me bem
e nesse aspecto sou exactamente como o resto da humanidade
preciso de ser amado todos os dias
só espero não morrer muito velhinho para que o teu amor me [
[dure até ao fim da vida

João Negreiros in o cheiro da sombra das flores

[Poema dedicado à SU, presente de aniversário... com atraso]

terça-feira, julho 21

João Negreiros ganha prémio e voz... logo à noite


João Negreiros, poeta e dramaturgo português, ganhou o prémio de poesia OFF FLIP e uma bolsa literária. O poeta será editado em Portugal pela Saída de Emergência.

No Brasil, já havia sido publicado na Antologia de Poesia da ASES, mas desta vez será publicado numa colectânea do Selo OFF FLIP em 2010. O prémio, na sua quarta edição, contou com a participação de 393 poetas. Hoje, na Antena 1, no Portugal em Directo, João Negreiros falou da mágoa que sente, por Portugal ainda não o ter reconhecido.

Eu, por mim, dou-lhe os parabéns. Como sempre lhe dei, desde que lhe conheço e sinto os poemas. E um abraço. Apertado. Se possível, logo à noite, em Braga. Por lá, eu sei, a sua poesia anda na voz do elenco do T.U.M. Mais informação aqui.
imagem: clique para aumentar

segunda-feira, abril 27

A única verdade absoluta


As pessoas quando sentem
fazem-no com o coração
é no trajecto p`ra cabeça
que se perde a informação
João Negreiros in O Cheiro da Sombra das Flores, pag.76
imagem: autor desconhecido

quarta-feira, abril 15

Contigo é isso tudo

Se eu te mandasse atirar de uma ponte
atiravas-te?
claro
porque a água era límpida e tinha um tesouro no fundo
mas se fosse um viaduto?


é evidente que caía no colo de uma bruxa que me raptava
e tu ias
[buscar-me e tiravas-me do caldeirão e isso tudo

isso tudo?

pois
isso tudo
contigo é isso tudo
se me mandas morrer
vivo
se me fazes sofrer
é sem dor
se me traíres
vai ser contigo
se me amares
é com outro
dás-me um chuto
e vou de ioió
e se o cordel sair
volto num pião


não há maneira
não há forma
não há jeito


vou voltar para ti mesmo que não queiras
mesmo que não gostes
mesmo que não existas
mesmo que me finem as forças
mesmo que sejas a imagem de um filme a preto e branco em que eras o cinzento]


e não te conheço
e não te mereço


mas amo-te e isso basta
não basta?
basta
não basta?
o amor chega
não chega?
ou queres que leve flores?

João Negreiros, in O Cheiro da Sombra das Flores, pag.71 e 72, 2007
imagem: autor desconhecido