quinta-feira, dezembro 8

Os livros





É então isto um livro,


este, como dizer?, murmúrio,

este rosto virado para dentro de

alguma coisa escura que ainda não existe

que, se uma mão subitamente

inocente a toca,

se abre desamparadamente

como uma boca

falando com a nossa voz?

É isto um livro,

esta espécie de coração (o nosso coração)

dizendo 'eu' entre nós e nós?


Manuel António Pina in Como se desenha uma casa, pag.21, Assírio & Alvim, 2011

quarta-feira, novembro 16

...sim, quero...


[e...está quase a chegar...]

Como quem, vindo de países distantes fora de / si, chega finalmente aonde sempre esteve /
e encontra tudo no seu lugar, / o passado no passado, o presente no presente, / assim chega o viajante à tardia idade / em que se confundem ele e o caminho. [...]


Manuel António Pina

domingo, maio 29

Vamos às compras [pavilhões A39 e A41]


A poesia vai acabar, os poetas

vão ser colocados em lugares mais úteis.

Por exemplo, observadores de pássaros

...(enquanto os pássaros não

acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao

entrar numa repartição pública.

Um senhor míope atendia devagar

ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum

poeta por este senhor?» E a pergunta

afligiu-me tanto por dentro e por

fora da cabeça que tive que voltar a ler

toda a poesia desde o princípio do mundo.

Uma pergunta numa cabeça.

— Como uma coroa de espinhos:

estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Manuel António Pina

segunda-feira, maio 16

Todas as palavras


As que procurei em vão,

principalmente as que estiveram muito perto,

como uma respiração,

e não reconheci,

ou desistiram e

partiram para sempre,

deixando no poema uma espécie de mágoa

como uma marca de água impresente;

as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te

nem foram capazes de dizer-me;

as que calei por serem muito cedo,

as que calei por serem muito tarde,

e agora, sem tempo, me ardem;

as que troquei por outras (como poderei

esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?

as que perdi, verbos e

substantivos de que

por um momento foi feito o mundo.

E também aquelas que ficaram,

por cansaço, por inércia, por acaso,

e com quem agora, como velhos amantes sem

desejo, desfio memórias,

as minhas últimas palavras.

Manuel António Pina

sábado, maio 14

Esplanada


Naquele tempo falavas muito de perfeição,

da prosa dos versos irregulares

onde cantam os sentimentos irregulares.

Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,


agora lês saramagos & coisas assim

e eu já não fico a ouvir-te como antigamente

olhando as tuas pernas que subiam lentamente

até um sítio escuro dentro de mim.


O café agora é um banco, tu professora de liceu;

Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.

Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,

e não caminhos por andar como dantes.

Manuel António Pina

[é repetido por aqui, eu sei, mas é ... fabuloso...bem como a imagem de quem, infelizmente, desconheço a autoria]

[...e sim, muito, muito feliz com a atribuição do Prémio Camões a este enorme poeta]

[...e, ainda, uma entrevista (2006) feita por Carlos Vaz Marques AQUI]

segunda-feira, março 14

Café do Molhe


Perguntavas-me

(ou talvez não tenhas sido

tu, mas só a ti

naquele tempo eu ouvia)



porquê a poesia,

e não outra coisa qualquer:

a filosofia, o futebol, alguma mulher?

Eu não sabia



que a resposta estava

numa certa estrofe de

um certo poema de

Frei Luis de Léon que Poe



(acho que era Poe)

conhecia de cor,

em castelhano e tudo.

Porém se o soubesse


de pouco me teria

então servido, ou de nada.

Porque estavas inclinada

de um modo tão perfeito


sobre a mesa

e o meu coração batia

tão infundadamente no teu peito

sob a tua blusa acesa


que tudo o que soubesse não o saberia.

Hoje sei: escrevo

contra aquilo de que me lembro,

essa tarde parada, por exemplo



Manuel António Pina in Ao Porto, Colectânea de Poesia sobre o Porto, pag. 163, Publicações Dom Quixote, 2001

imagem: Edward Hopper

sexta-feira, junho 4

Amor como em casa


Regresso devagar ao teu

sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que

não é nada comigo. Distraidíssimo percorro

o caminho familiar da saudade,

pequeninas coisas me prendem,

uma tarde no café, um livro. Devagar

te amo e às vezes depressa,

meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,

regresso devagar a tua casa,

compro um livro, entro no

amor como em casa.
Manuel António Pina
imagem: Tagreed Albagshi

quarta-feira, setembro 30

Lembranças

1.Devia lembrar-me de lembranças minhas, mas lembro-me de lembranças alheias (lembranças de pessoas que nunca conheci nem nunca me conheceram).


2.Um dia, há muitos anos, cruzei-me na rua comigo numa cidade estrangeira. Recordo agora, do lado de fora, esse instante. Eu era muito jovem e julgava então que desejava morrer. Quem em mim se lembra olhou-me alheadamente, passando, e, por qualquer motivo pareci-lhe familiar. Talvez alguém encontrado um dia,, por acaso, em algum lugar da nossa (da minha e da sua) vida, talvez algum amigo de infância para sempre perdido (quando a infância era como uma vez foi, verosímil e única). Eu não me olhei ou , se me olhei, não me reconheci (é, pois, o Desconhecido aquilo que em mim, agora, se lembra). Sem saber porquê, desejava, ou julgava que desejava, morrer. Contudo era já muito tarde. Alguns anos antes, sim, poderia ter morrido, tão perto estivera então da dor e da perfeição. Mas nessa altura não o sabia ainda. Lembro-me de mim passando e do meu confuso e incerto medo como se fosse eu, como se o medo fosse meu.
Aquele lugar, que lugar era? Que fazia eu ali, tão longe? E eu, que fazia ali? Lembrar-me-ei, também eu, desse lugar e desse momento? Quem, ou o quê, se lembra de isto? Agora sei que, se me tivesse olhado, por um momento que fosse, poderia ter-me visto. Alguma vez voltarei a estar, assim, de de novo diante de mim?

3. C. tinha longos cabelos escuros e uma voz do Norte, levemente cantada. Lembro-me de isso e, ainda,de algumas poucas palavras e de uma respiração ao telefone respirando.

Telefonara para dizer-me, entre mais coisas, que o melhor era eu fazer como se ela, e eu também, tivéssemos morrido há muito e lembrar-me de tudo (já não me lembro de quê) como de um vago sonho sonhado por outras duas pessoas, ou como se eu próprio fosse outra pessoa lembrando-se. Não era (não sei se lhe disse eu isso ou ela quem mo disse a mim) algo que se dissesse a alguém com 20 anos, mas era o género de coisa que só alguém com 20 anos pode completamente compreender. Lembro-me de que comprei, por esses dias, uma camisola castanha, de lã, e de que pensei então: «A quem falarei agora de todas as coisas sem importância?» A solidão é uma sôfrega evidência, alimenta-se de pequenos materiais, de circustâncias e de passagens, devorando a vida por onde ela é mais óbvia: por dentro.

Assim morremos os dois, tu e eu. Como poderíamos nós, ao telefone, saber que falávamos já, distantemente, de dois estranhos?


Agora o mundo é pequeno e incompreensível. Lembro-me (não sei quem) de quando o mundo e o tempo eram imensos e de quando também eu era imenso. As palavras podiam, então, conter inteiramente o destino:


- Fala-me, não pares de falar. Ouvindo-te tenho a certeza de que sou real, e de que também tu és, fora de mim, real.


- Somos reais, vês? - E seguravas-me na mão, sossegando-me, ou pousavas levemente a mão sobre a minha cabeça para eu adormecer.


[...]


Manuel António Pina in Poesia Reunida, pag. 263, 264, 265, Assírio & Alvim, 2001
imagem: Carla Salgueiro

sábado, setembro 26

[o caminho de casa]


«As palavras fazem

sentido (o tempo que levei até descobrir isto!),

um sentido justo,

feito de mais palavras.

(A impossibilidade de falar

e de ficar calado

não pode parar de falar,

escrevi eu ou outro).


Volto a casa.

ao princípio,

provavelmente um pouco mais velho.

As mesmas árvores,

mais velhas

a lembrança delas

passando sem tempo nos meus olhos,

como uma ideia feita ou um sentimento.


Entre o que regressa

e o que partiu um dia

ficaram palavras;


talvez (quem sabe?)

algum sentido.


Agora, como um intruso, subo as

escadas e abro a porta; e entro, vivo,

para fora de alguma coisa morta.


Senta-te aqui, fala comigo,

faz sentido

e totalidade à minha volta!»


Manuel António Pina in Poesia Reunida, pag.205, Assírio e Alvim, 2001
imagem: Google

quinta-feira, abril 30

Das coisas importantes


"Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgências”
Manuel António Pina, na Pública do último domingo
[a) olho fixamente para a minha secretária.
b) haverá outras coisas que eu possa amontoar?]
devidamente roubado aqui

domingo, março 29

Esplanada (poema perfeito)



Naquele tempo falavas muito de perfeição,

da prosa dos versos irregulares

onde cantam os sentimentos irregulares.


Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim

e eu já não fico a ouvir-te como antigamente

olhando as tuas pernas que subiam lentamente

até um sítio escuro dentro de mim.


O café agora é um banco, tu professora de liceu;

Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.

Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,

e não caminhos por andar como dantes.


Manuel António Pina


imagem: tenho imensa pena de não saber o seu autor; recebi-a por mail, com este poema perfeito