quinta-feira, dezembro 8

Aqui




Aqui cantaste nua.


Aqui bebeste a planicie, a lua,

e ao vento deste os olhos a beber.

Aqui abandonaste as mãos

a tudo o que não chega a acontecer.

[...]

Eugénio de Andrade

terça-feira, outubro 25

Frente a frente



Nada podeis contra o amor.

Contra a cor da folhagem,

contra a carícia da espuma,

... contra a luz, nada podeis.



Podeis dar-nos a morte,

a mais vil, isso podeis

- e é tão pouco.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, maio 5

As amoras


O meu país sabe às amoras bravas

no verão.

Ninguém ignora que não é grande,

nem inteligente, nem elegante o meu país,

mas tem esta voz doce

de quem acorda cedo para cantar nas silvas.

Raramente falei do meu país, talvez

nem goste dele, mas quando um amigo

me traz amoras bravas

os seus muros parecem-me brancos,

reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade


[com um imenso obrigada ao meu querido amigo A.Mendes]

quarta-feira, abril 13

Os livros. A sua cálida...



Os livros. A sua cálida

Terna, serena pele. Amorosa

Companhia. Dispostos sempre

A partilhar o sol

Das suas águas. Tão dóceis

...Tão calados, tão leais.

Tão luminosos na sua branca e vegetal cerrada

Melancolia.

Amados

Como nenhuns outros companheiros

Da alma. Tão musicais

No fluvial e transbordante

Ardor de cada dia.
 
Eugénio de Andrade

quarta-feira, fevereiro 16

Que tempo é o nosso?


Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.

E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à "sabedoria" do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado implacavelmente para transformar o indivíduo em "cadáver adiado que procria", como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida?

Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua contradição, morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste, mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica que preocupada com uma problemática moral, que não sabe como fundar e instituir, pois nenhuma fará autoridade se não tiver em conta a totalidade do ser; nenhuma, em que espírito e vida sejam concebidos como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto reduzir o homem a um fragmento do homem. Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da exclusão.

Eugénio de Andrade in Os Afluentes do Silêncio

sexta-feira, novembro 26

Horas, horas, sem fim,


Horas, horas, sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, outubro 25

O que respira em ti são os olhos

Eugénio de Andrade in Com Palavras Amo, pag.74, Instituto Cultural de Macau, 1990

[um dia voltarei a Macau...]

sexta-feira, outubro 8

Nos teus dedos nasceram horizontes

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.

Eugénio de Andrade

sábado, outubro 2

Procuro a ternura súbita

Procuro a ternura súbita,

os olhos ou o sol por nascer

do tamanho do mundo,

o sangue que nenhuma espada viu,

o ar onde a respiração é doce,

um pássaro no bosque

com a forma de um grito de alegria.



Oh, a carícia da terra,

a juventude suspensa,

a fugidia voz da água entre o azul

do prado e de um corpo estendido.



Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.

Chamo por ti, e o teu nome ilumina

as coisas mais simples:

o pão e a água,

a cama e a mesa,

os pequenos e dóceis animais,

onde também quero que chegue

o meu canto e a manhã de maio.



Um pássaro e um navio são a mesma coisa

quando te procuro de rosto cravado na luz.

Eu sei que há diferenças,

mas não quando se ama,

não quando apertamos contra o peito

uma flor ávida de orvalho.



Ter só dedos e dentes é muito triste:

dedos para amortalhar crianças,

dentes para roer a solidão,

enquanto o verão pinta de azul o céu

e o mar é devassado pelas estrelas.



Porém eu procuro-te.

Antes que a morte se aproxime, procuro-te.

Nas ruas, nos barcos, na cama,

com amor, com ódio, ao sol, à chuva,

de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in As Palavras Interditas

segunda-feira, setembro 6

A boca


A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?

Eugénio de Andrade

segunda-feira, setembro 21

o poema de Eugénio


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas

em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;

era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.

E eu acreditava.

Acreditava,porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,

era no tempo em que o teu corpo era um aquário,

era no tempo em que os meus olhos

eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor,

já não se passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certezade que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade
imagem: Carla Salgueiro

sexta-feira, agosto 21

O Porto é só uma certa maneira...


O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar.

O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de São Vítor correndo nos sulcos de sua melancolia.

O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim cada vez mais da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito que se afastem, regressam sempre à minha vida.

Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala pouse aqui, por ser de cal.

[minha querida amiga, deixo-te este poema de Eugénio de Andrade sobre esta cidade que também é tua. Tão tua, como tu, nossa! A ilustração é de uma fotógrafa que muito admiro...

Feliz aniversário, querida Zaclis:) TUDO de bom hoje e sempre ]


Eugénio de Andrade

imagem: Zaclis Veiga

quinta-feira, junho 4

Entre os teus lábios



Entre os teus lábios

é que a loucura acode,

desce à garganta,

invade a água.

No teu peito

é que o pólen do fogo

se junta à nascente,

alastra na sombra.

Nos teus flancos

é que a fonte começaa ser rio de abelhas,

rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos

é que a areia queima,

o sol é secreto,

cego o silêncio.

Deita-te comigo.

Ilumina meus vidros.

Entre lábios e lábios

toda a música é minha.


Eugénio de Andrade
imagem: ?