domingo, fevereiro 12

Tu estás aqui




[...]

Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto

pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa

uma coisa para além disto que não isto

Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo

é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos

mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos

tu és em cada gesto todos os teus gestos

e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como

a palavra paz

Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas

perdoa pagares tão alto preço por estar aqui

perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui

prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente

deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias

e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer

sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

Ruy Belo

quinta-feira, novembro 3

Ruy Belo - Homem de palavra [s]


 « Hoje e amanhã são dias para recordar RUY BELO. A Fundação Calouste Gulbenkian, nos 50 anos da publicação de Aquele Grande Rio Eufrates, o primeiro livro do poeta, acolhe o colóquio HOMEM DE PALAVRA(S). ontem, no Diário Câmara Clara, Paula Mourão explicou a razão do título: "De algum modo cobre todas as questões importantes na obra do Ruy Belo - o Homem tem que ver com o grande sentido da Humanidade, da individualidade e da História que o Ruy Belo sempre teve; e, depois, de Palavra(s), não é?... O homem é construído, também no sentido poemático, de palavras." (Peça de Filipa Leal)»

À tua palavra me acolho...






À tua palavra me acolho lá onde

o dia começa e o corpo nos renasce

Regresso recém-nascido ao teu regaço

minha mais funda infância meu paul

Voltam de novo as folhas para as árvores

e nunca as lágrimas deixaram os olhos

Nem houve céus forrados sobre as horas

nem míseras ideias de cotim

despovoaram alegres tardes de pássaros

O sol continua a ser o único

acontecimento importante da rua

Eu passo mas não peço às árvores

coração para além dos frutos

Tu és ainda o maior dos mares

e embrulho-me na voz com que desdobras

o inumerável número dos dias



Ruy Belo

imagem: Lazahr Ben-Ymanuel

sábado, outubro 15

A criança está completamente imersa na infância




A criança está completamente imersa na infância


a criança não sabe que há-de fazer da infância

a criança coincide com a infância

a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono

deixa cair a cabeça e voga na infância

a criança mergulha na infância como no mar

a infância é o elemento da criança como a água

é o elemento próprio do peixe

a criança não sabe que pertence à terra

a sabedoria da criança é não saber que morre

a criança morre na adolescência

Se foste criança diz-me a cor do teu país

Eu te digo que o meu era da cor do bibe

e tinha o tamanho de um pau de giz

Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez

Ainda hoje trago os cheiros no nariz

Senhor que a minha vida seja permitir a infância

embora nunca mais eu saiba como ela se diz



Ruy Belo

imagem: marta v.

sábado, setembro 17

Poesia, último reduto da literatura


«Entretanto, que se passa com a poesia? A poesia há muito que deixara de ser narrativa, se é que alguma vez profundamente o fora. A poesia passou a viver daquilo que nunca deixara de ser: o exercício da sabedoria da linguagem, uma aventura da palavra. Reduziu-se ao achado artístico, à capacidade de surpresa, à exploração intensiva da fala.


Os concretistas, que fizeram a sua época, esgotaram-se em experiências que em si mesmas se compraziam, deixaram-se atrair perigosamente por outras artes com as quais não poderiam competir, esqueceram-se afinal da palavra que, mesmo desintegrada, pulverizada, explorada nas suas formas mínimas, não deixa de ter características específicas. A poesia concreta pode ser um limite a atingir, os poetas de vanguarda não poderão deixar de ter em conta as suas conquistas, mas os seus teóricos, ao convertê-la num absoluto, tinham necessariamente de chegar à conclusão de que a poesia morreu, quando o que morreu foi a poesia concreta.

A poesia está doente, a poesia morreu? A poesia continua. A linguística, uma das disciplinas mais importantes no domínio das ciências, veio dar-lhe um novo alento e um apoio insuspeito. A teoria da informação, a lógica matemática, a estatística permitiram iluminá-la melhor. A poesia já não tem mistério, a poesia é uma coisa que se aprende, o génio não tem sentido na época dos computadores. A história, o argumento, a intriga, que deixaram de apoiar o romance e o cinema desertaram de toda a arte.

A desmistificação artística é geral. O argumento, insistimos, nunca passara de uma maneira de assegurar a consistência da estrutura. Mas essa consistência podia ser garantida através de processos mais específicos e menos enganadores, como por exemplo as estruturas sintácticas, as enumerações, a anáfora, para só citar alguns. A poesia que, como vimos, nunca deixou de ser o núcleo de toda a arte, vê-se assim de súbito situada no centro da problemática artística, graças ao seu carácter precursor, à fidelidade ao destino da arte, à coerência que, se temporariamente se isolou, foi o penhor da fidelidade de toda a actividade artística à sua mais profunda natureza, à sua origem, à sua finalidade.

A poesia não tem nada, a poesia não promete nada que não ela própria. Há muitos séculos divorciada da sua origem religiosa, acabou por se emancipar dos últimos mitos. No meio do desconcerto pouco menos que geral, os poetas, tantas vezes isolados, incompreendidos, expulsos da cidade asseguraram a continuidade da única religião possível.

Tem poucos leitores a poesia? Toda a arte tem pouco público. A arte é exigente e, mesmo nos países mais desenvolvidos, apesar do elevado grau de alfabetização que apresentam, as exigências da organização da sociedade moderna submetem em geral o homem a um tipo de vida que se não compadece com a disponibilidade para um sector da actividade intelectual que ao fim e ao cabo, não produz dividendos, nem sequer assegura a tranquilidade das consciências. Aliás, a receptividade para a poesia já hoje por hoje é muito diferente nos países ocidentais ou nos países socialistas mas, embora pudéssemos tentar encontrar uma explicação para o facto, preferimos não nos arriscar a fazê-lo, quando nem sequer Georges Mounin o faz, no seu livro Poésie et Société.

A poesia subsiste, a poesia subsistirá. Independentemente de questões intrínsecas, que explicarão o êxito momentâneo de certas obras, apostamos numa forma de arte que particularmente se apoia na linguagem e nas suas mais profundas virtualidades, vizinha afinal de uma linguagem popular que, embora prejudicada pelo êxodo rural e pelo consequente domínio, mais aparente do que real, de um idioma reduzido, fundamental digest, não deixará de sobreviver enquanto sobre a terra algum homem houver. A poesia núcleo e limite das artes que se apoiam na linguagem que distingue o homem dos outros animais, apresenta-se-nos como o último reduto dessas artes. Atitude utópica, aposta, justificação própria? Depois do que já, ao longo deste artigo, dissemos, cremos honestamente que não. Na pior das hipóteses, mortal como o homem e como a sua única terra, a poesia permanecerá não só como a forma mais pura de arte literária mas também como a indisciplinadora mais audaz, como a afirmação mais vigilante de uma consciência individual e social capaz de acusar todas as traições do homem ao seu destino humano. Poesia, arte do passado, do presente e do futuro, principalmente do futuro, eu, teu ínfimo cultor, te saúdo, aqui do mais ocidental dos países.»

Poesia, último reduto da literatura, Ruy Belo in ”Na senda da Poesia” (Ed. Assírio & Alvim, 2002)



Texto desviado daqui

terça-feira, maio 24

Só sei que tinha o poder de uma criança


Na minha juventude antes de ter saído

da casa dos meus pais disposto a viajar

eu conhecia já o rebentar do mar

das páginas dos livros que já tinha tido

Chegava o mês de maio era tudo florido

o rolo das manhãs punha-se a circular

e era só ouvir o sonhador falar

da vida como se ela houvesse acontecido

e tudo se passava numa outra vida

e havia para as coisas sempre uma saída

Quando foi isso? Eu próprio não sei dizer


Só sei que tinha o poder duma criança

entre as coisas e mim havia vizinhança

e tudo era possível era só querer
 
Ruy Belo

segunda-feira, novembro 22

Mas que sei eu das folhas no outono

Mas que sei eu das folhas no outono

ao vento vorazmente arremessadas

quando eu passo pelas madrugadas

tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono

e acabam coisas mal principiadas

no ínvio precipício das geadas

que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito lamenta

a dor de assim passar que me atormenta

e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?

As coisas vêm vão e são tão vãs

como este olhar que ignoro que me olha.

Ruy Belo


[poema desviado do blog do Pedro Rolo Duarte, a quem sou imensamente grata]

domingo, setembro 26

Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo


Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado.

Ruy Belo

terça-feira, setembro 21

porque o outono boreal está aí



Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar
caminha para o mar pelo verão.
Ruy Belo
imagem: João Paulo Coutinho

terça-feira, setembro 14

Nomeei-te no meio dos meus sonhos

Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

Ruy Belo

quarta-feira, maio 26

As velas da memória


Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida


Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.


Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?


Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?


E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder



Ruy Belo in Aquele Grande Rio Eufrates


[logo às 21.30 horas no labirintho]

quinta-feira, março 18

Segunda infância


À tua palavra me acolho lá onde

o dia começa e o corpo nos renasce

Regresso recém-nascido ao teu regaço

minha mais funda infância meu paul

Voltam de novo as folhas para as árvores

e nunca as lágrimas deixaram os olhos


Nem houve céus forrados sobre as horas

nem míseras ideias de cotim

despovoaram alegres tardes de pássaros

O sol continua a ser o único

acontecimento importante da rua

Eu passo mas não peço às árvores

coração para além dos frutos

Tu és ainda o maior dos mares

e embrulho-me na voz com que desdobras

o inumerável número dos dias

Ruy Belo , Obra Poética, vol. 1, Presença, Lisboa, 1981
[infelizmente desconheço o autor da imagem]