quinta-feira, março 10
domingo, setembro 19
A génese dos heterónimos de Pessoa por Pessoa

Meu prezado Camarada:
Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.
[...]
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer cousa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido –, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
[...]
Fernando Pessoa
in Fernando Pessoa Quando fui Outro,Luiz Ruffato, Editora Objectiva, 2010
Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.
[...]
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer cousa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido –, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
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Fernando Pessoa
in Fernando Pessoa Quando fui Outro,Luiz Ruffato, Editora Objectiva, 2010
imagem: António Costa Pinheiro
Escrito/editado por Marta 2 Terráqueos
Etiquetas: Fernando Pessoa, livros que ando a ler
sexta-feira, maio 7
Laura e Julio
[...]
Não trabalhava fora de casa, pois revelou-se escritor. Ou era assim, pelo menos, que ele se apresentava, como um escritor de grande talaento, embora sem obra.
- Como é que sabes que tens talento, se nunca deste a ti próprio uma oportunidade de o demonstrar? - perguntou-lhe Julio certa vez.
- Isso sabe-se - respondeu com uma ponta de cinismo. - Foi o meu olfacto de escritor, por exemplo, que me impeliu a tornar-me vosso amigo.
- Como assim?
- Vocês não se apercebem, mas são umas personagens muito romanescas, tanto observados em conjunto, como cada um por si. Podia escrever um romance sobre os dois, mas é melhor vivê-los que escrevê-los.
- O que é que eu tenho de personagem de romance?
- perguntou Laura, apanhada de surpresa pelas palavras de Manuel.
- A ambiguidade.
- O que é que isso quer dizer?
- Que podes ser compreendida de muitas maneiras, todas elas plausíveis. És um texto cifrado.
- E eu? O que é que eu tenho de personagem de romance? - perguntou-lhe Julio, mais para romper a bolha de onde, de repente, se tinham instalado Manuel e a mulher.
- O facto de estares louco.
- Como, louco?
- Completamente. Se queres que te diga, eu imagino-te como uma personagem que, um dia, durante a juventude, percebeu que estava louca e que, desde então, passa a vida a tentar ocultar esse facto. E, embora ninguém se tenha apercebido disso, nem a tua família, nem a tua mulher, nem os teus amigos,ambos sabemos que és louco: tu, porque sofres; e eu, porque sou escritor.
- Um escritor sem obra - acrescentou Julio, a rir, para esconder a perturbação provocada pelas palavras do vizinho.
- Relativamente. A descrição que acabo de fazer de ti é uma peça magistral.
Riram-se os três, embora uns mais do que outros. Enquanto ria, Julio sofreu uma experiência de desdobramento que lhe recordou o seguinte episódio de infância: ele e a mãe dirigiam-se para a escola de mãos dadas, enquanto se cruzaram com um menino cego que também seguia de mãos dadas à sua. Julio observou o menino com curiosidade, mesmo até com impertinência,e, nesse instante,como se no interior do seu crânio tivesse estalado a luz procedente de uma explosão nuclear, a realidade encheu-se de uma aura branca tão intensa que os transeuntes se converteram em fantasmas e a rua num cenário. A experiência não deve ter durado mais do que dois ou três segundos, durante os quais Julio se viu a si próprio a partir do menino cego. Ao desaparecer a aura e regressar à ordem anterior, o cego estava a comtemplar Julio das suas órbitas apagadas, e este pediu à mãe que mudassem de passeio. Agora, acabava de se desdobar na pessoa de Manuel. Durante umas décimas de segundo, durante as quais se manifestou de novo a aura que congelou momentaneamente os risos, Julio soube - porque não se tratava de um sentimento, mas de uma informação - que tinha estado por uns instantes dentro do corpo de Manuel, sem terabandonado, no entanto, o seu.
- E de que é que vivem os escritores sem obra? - perguntou ainda, para disfarçar a experiência que tinha acabado de sofrer e também para pôr em evidência a inutilidade de Manuel.
- Não sejas grosseiro - limitou-se a responder o escritor. - Ambos sabemos que ganhar a vida é vulgar.
Juan José Millás in Laura e Julio, pag. 13 e 14, Quetzal, 2007
imagem: Clarence Hudson
Escrito/editado por Marta 4 Terráqueos
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quarta-feira, março 24
sábado, janeiro 23
Sugestões de leitura em 1885
«Sabes uma coisa? Quando fui o ano passado, apresentado a Junqueiro, ele disse-me: "Leia Michelet; Michelet faz bem ao estômago e ao cérebro; faz bem ao espírito e à saúde" (...)
Queres poesia? Tens aqui o Junqueiro, o João de Deus, o Gonçalves Crespo, etc, etc. Todos estes são poetas modernos: o João de Deus, dando uma nova feição à poesia lírica de Camões é delicioso; Gonçalves Crespo, seguindo as pisadas dos parnasianos moderníssimos da França, como Théodore de Banville, François Coppée, Sully-Proudhome, etc, é tão bom como eles, e é um dos melhores modelos da poesia burilada com a paciência de um chinês; Guerra Junqueiro, enfim, o primeiro que deitou por terra as pieguices sentimentais dos românticos, em A Morte de D. João e na Musa em Férias, é, por vezes, um gigante como Vítor Hugo.
Já os lestes decerto, e lerias por ventura o maior poeta brasileiro (olá se é) Castro Alves, o autor das Espumas Flutuantes? Creio bem que sim. Põe de parte o Casimiro de Abreu, que embora seja um bom poeta não nos dá consolação nem vigor; dá-nos apenas desalentos e lágrimas.
Queres romances? Não leias os Ponsons, os Dumas (Pai), os Montepins; lê o Zola, o Daudet, os Goncourt (Edmundo e Júlio), e entre nós o Eça de Queirós que não sei se sabes é o escritor mais considerado de Portugal e Brasil.
Alexandre Dumas (Pai) não tem romances que instruam, que nos mostrem a sociedade tal qual ela é; o que não sucede com os outros apontados que são hoje os grandes homens da literatura moderna, os grandes escalpelizadores da alma humana».
António Nobre, in carta a Alberto Baltar, 9 de Fevereiro de 1885
in António Nobre, 1867 - 1900 FOTOBIOGRAFIA, Mário Cláudio, Dom Quixote, 2001
Escrito/editado por Marta 1 Terráqueos
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sábado, janeiro 16
gosto de ressuscitar palavras
[...] Surpreendentemente, atendendo à hora tardia, a tasca estava cheia. Cheirava a fritos. Ouviam-se gargalhadas. Frases Soltas. A uma das mesas dois ou três tipos cantavam antigos sucessos angolanos e brasileiros. Um deles dedilhava mansamente um violão. Outro batucava no tampo da mesa. O taxista informou-nos que só havia lugares ao fundo, a um dos cantos, e ajudou-nos a chegar lá. Formávamos um grupo um pouco bizarro, mas ninguém pareceu reparar em nós. Luanda, já o disse, é um alfobre de personagens insólitos.
(Gosto de ressuscitar palavras. Nos dias que correm poucas pessoas se servem da palavra alfobre, por exemplo, a não ser um ou outro eclesiasta da velha escola. Creio que se aplica particularmente bem ao presente contexto, sobretudo atendendo à possível etimologia árabe - escavação, buraco, fossa.)
José Eduardo Agualusa in Barroco Tropical, pag. 197, Dom Quixote, 2009
imagem: cidade de Luanda [desconheço o autor]
Escrito/editado por Marta 9 Terráqueos
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quinta-feira, abril 23
E se me recomendassem um livro?
E, ainda, para assinalar o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, pedia-vos um favor! Que me recomendassem um livro! Isso, um livro de que tenham gostado muito! íssimo!
Eu, ando a ler várias coisas, como sempre! Mas não resisto a recomendar um! Ainda não o terminei e sei que será um dos livros da minha vida!
Chama-se SOMOS O ESQUECIMENTO QUE SEREMOS! E apetecia-me meter férias para o acabar de ler. Assim, de uma vez só! Por outro lado, não me apetece chegar ao fim! Sabem como é? Pois é! Entretanto, e porque falamos de livros, quero agradecer ao Paulo, a descoberta de Ondjaki e à Malina, a descoberta de Ingeborg Bachmann! São novos caminhos que descubro, por aí! E sabem-me tão bem!
Em breve, contarei o que dizem os novos livros do Valter Hugo Mãe. Ontem, fui ouvi-lo à Fnac. A verdadeira História dos Pássaros e O Homem Calado já estão na minha mesinha de cabeceira! Agora, vou visitar-vos!
Escrito/editado por Marta 29 Terráqueos
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segunda-feira, fevereiro 16
Esqueçam a neutralidade
«Não estou à espera que concordem com tudo o que eu diga aqui. Mas espero que quando discordarem...discordem zangados. Que fiquem tão lixados que...façam alguma coisa.
FAZER ALGUMA COISA. Essa é a ideia essencial, não é? (Tenha pena do pobre castanho.)
(A Tecnicolar lidera). A frase chave da minha história... a história de "porquê este livro"...é uma lápide. (Frase-chave, lápide, talvez uma estranha justaposição, mas quando chegamos aos 60 pensamos nestas coisas.) É uma lápide que tem o epitáfio que mais quero evitar:
Thomas J. Peters
1942 - 2003
Teria feito coisas
mesmo fixes, mas o
patrão não deixou.
Oh, meu Deus, não me dês esse desgosto! (E já agora, por favor, apaga o "2003".)
Por outro lado, sei exactamente o que quero escrito na minha lápide:
Thomas J. Peters
1942 - Sempre
Foi um jogador.
Não "ele ficou rico". Não, "ele ficou famoso". Nem sequer "ele fez bem as coisas". Em vez disso: "Foi um jogador". Por outras palavras: não ficou sentado nas linhas laterais...a ver o mundo passar...enquanto tinha lugar a mais profunda alteração de premissas básicas das últimas centenas de anos (se não dos últimos cerca de mil anos).
Concorde ou discorde de mim em tudo o resto, mas se tiver um pingo de integridade ou espírito ou garra, tem de concordar com isto: sair das linhas laterais - ser um jogador não é uma opção».
Tom Peters in Reinventar o Mundo! pag.11
Escrito/editado por Marta 1 Terráqueos
Etiquetas: livros que ando a ler, Tom Peters
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