sexta-feira, março 23

O meu amor não cabe num poema




O meu amor não cabe num poema – há coisas assim,


que não se rendem à geometria deste mundo;

são como corpos desencontrados da sua arquitectura

ou quartos que os gestos não preenchem.


O meu amor é maior que as palavras,e daí inútil

a agitação dos dedos na intimidade do texto

- a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías

nem a candura da mão que protege a chama que estremece.


O meu amor não se deixa dizer – é um formigueiro

que acode aos lábios como a urgência de um beijo

ou a matéria efervesente dos segredos; a combustão

laboriosa que evoca, à flor da pele,vestígios


de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,

ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras

com a nudez do teu nome – é um fantasma que estrebucha

no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.


Um verso que o vestisse definharia sob a roupa

como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema

podia ser o chão da sua casa.


Maria do Rosário Pedreira

domingo, abril 3

O gato lembra-se sempre de ti nos intervalos


O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
de olhos acesos as histórias que nos contas.
Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
o pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas.

Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
e ofereço-te o silêncio  de um pequeno quarto recuado.
as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
e esqueço-a. Nunca a saberemos de cor, o gato e eu.

Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
fica. Eu fecho as portas de vagar. O gato mia baixo
à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
o segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.

Maria do Rosário Pedreira in A Casa e o Cheiro dos Livros, pag. 36, Gótica, 2002

imagem: Carla Salgueiro

domingo, março 27

Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas


Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:

Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.

Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.

Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.


Maria do Rosário Pedreira


poema desviado daqui

quarta-feira, dezembro 1

Não partas já. Fica até onde a noite se dobra


Não partas já. Fica até onde a noite se dobra
para o lado da cama e o silêncio recorta
as margens do tempo. É aí que os livros
começam devagar e as cores nos cegam
e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas
quando amanhã se ferir nos espelhos do quarto
em estilhaços de luz; e um feixe de poeiras
rasgar as janelas como uma ave desabrida.
Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,
como a gastar os dedos na derradeira página.
E então, sim, parte, para que outra história se
invente mais tarde, quando os pássaros gritarem
à primeira lua e os gatos se deitarem sobre
o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.

Maria do Rosário Pedreira

segunda-feira, maio 17

Se alguém me perguntar


Se alguém me perguntar, hei-de dizer que sim, que foi

verdade - que não amei ninguém depois de ti nem

o meu corpo procurou nunca mais outro incêndio

que não fosse a memória de um instante junto

do teu corpo; e que deixei de ler quando partiste

por não suportar as palavras maiores longe da tua boca;

e que tranquei os livros na despensa e tranquei a despensa,

acreditando que, se não me alimentasse, acabaria

por sofrer de uma doença menor do que a saudade, mas

a que os outros, pelo menos, não chamariam loucura.

[...]

Maria do Rosário Pedreira in O Canto do Vento nos Ciprestes

sexta-feira, março 19

As raparigas amam muito.



As raparigas amam muito. Riem

atrás das mãos uma manhã inteira

para esconder o vermelho dos

beijos que alguém lhes roubou e

um nome que vão deixar escapar

entre as primeiras palavras que

disserem. Vestem do avesso os



aventais de chita e fazem o leite

sobrar do fervedor e o caldo ser

mais salgado do que o mar. Mas



é bonito vê-las caminhar descalças

ao longo do corredor, como se

pedissem um par para dançar. As



raparigas amam tanto. Sentam-se

em rodas de segredos uma tarde

inteira e esquecem no tanque os

colarinhos sujos das camisas, e os

cueiros, e uma barra de sabão a



derreter-se como o seu coração.



Mas é bonito vê-las beijar a boca

ao espelho no quarto das traseiras

e também a outra boca no retrato

que a seguir escondem amordaçado

na algibeira, não lhes cobice alguém

o que não tem. As raparigas amam



de mais. Deixam-se ficar sem dizer

nada uma noite inteira, bordando

no linho dos enxovais letras secretas

ao calor do fogão. E picam os dedos



distraídos nas agulhas que usaram

para descobrir o sexo de cada filho

que terão num jogo que jogaram

entre elas à tardinha. Mas é bonito



vê-las ao serão, quando o vento as

chama atrevido da cozinha e dão

um pulo seco na cadeira, e largam o



bordado e a lareira, e correm até à

porta a colher beijos que lhes deixam

risos nos lábios tão vermelhos como

as mais doces cerejas deste verão.


Maria do Rosário Pedreira in “Nenhum nome depois", edição da Gótica
imagem: Tarsila do Amaral

sábado, abril 18

Pudesse eu

Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite —
e deitar-me na terra; e ter uma cama de pedra branca e
um cobertor de estrelas; e não ouvir senão o rumor das ervas
que despontam de noite, e os passos diminutos dos insectos,
e o canto do vento nos ciprestes; e não ter medo das sombras,
nem das aves negras nos meus braços de mármore,
nem de te ter perdido — não ter medo de nada. Pudesse


eu fechar os olhos neste instante e esquecer-me de tudo —
das tuas mãos tão frias quando estendi as minhas nessa noite;
de não teres dito a única palavra que me faria salvar-te, mesmo
deixando que eu perguntasse tudo; de teres insultado a vida
e chamado pela morte para me mostrares que o teu corpo
já tinha desistido, que ias matar-te em mim e que era tarde
para eu pensar em devolver-te os dias que roubara. Pudesse


eu cair num sono gelado como o teu e deixar de sentir a dor,
a dor incomparável de te ver acordado em tudo o que escrevi —
porque foi pelo poema que me amaste, o poema foi sempre
o que valeu a pena (o mais eram os gestos que não cabiam
nas mãos, os morangos a que o verão obrigou); e pudesse

eu deixar de escrever nesta manhã, o dia treme na linha
dos telhados, a vida hesita tanto, e pudesse
eu morrer,mas ouço-te a respirar no meu poema.

Maria do Rosário Pedreira In O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES, Lisboa, Gótica, 2001