In case of loss, please return to: e lá escrevi o meu nome e o contacto. As a reward: $ e deixei o sorriso e o just one coffee com o ponto de exclamação. E nunca mais me lembrei que o tinha feito, até ao dia em que, chegada ao hotel, dei conta que a tinha perdido.
Há anos que é assim. Eu e as agendas de papel com um elástico em volta. Quase sempre um Moleskine Diary de capas pretas, onde enfio a minha vida, a vida feita de planos, de ideias, de frases - só essa - as experiências com as canetas que vou comprando e perdendo e experimentando na pouca gramagem das folhas pérola.
Tirando o dia em que me roubaram a carteira, no comboio, nunca tinha sentido tão profundamente a ausência da minha agenda. Já passaram vinte anos e ainda hoje recordo a angústia de me ver sem ela, acima de tudo. Sem essa espécie de certidão de passado recente que nos vamos passando diariamente. Onde atestamos, dia após dia, que andamos cá. O único lugar onde me dá a sensação de que o passado se pode resgatar a qualquer momento, num folhear de páginas.
No hotel, sem indicações precisas para o dia seguinte, tentava soluções. Era o imediato a preocupar-me. Mas depois, enquanto tentava adormecer, pensava em todas as coisas escritas aqui e ali, nesta e naquela página. Tudo o que não conseguiria recuperar, ao contrário da calendarização da formação, agendada até ao final do ano.
A última vez que tinha pegado na agenda foi para consultar o nome da rua do hotel. Foi no aeroporto. Pedi uma água lisa, sentei-me, aconcheguei a mala e peguei na agenda. O telefone tocou. Voltei a abrir a agenda. Disse, não, não. Outro dia, esse não posso. Pousei a agenda e o telefone.
Fiquei a observar as pessoas, os trajectos, os trejeitos, os trajes. Tudo à minha volta. O telefone voltou a tocar e eu sim, sim, cheguei bem, enquanto me levantava com o nome da rua na cabeça, até ao táxi. Italiana? Perguntou o taxista. Não. Portuguesa. E eu para ali a moer aquele “já vivido”. Em Barcelona tinha sido igual, em Londres, também. Em Dusseldorf, duas vezes. A entoação a converter a palavra na pergunta, curta e curiosa com que me recebiam mal entrava no táxi.
Foi no aeroporto. Não tinha dúvidas, agora. Deixei a minha agenda numa cafetaria de um não lugar onde passam centenas de pessoas, onde cruzam olhares de todas as latitudes. Em que mãos poderá estar o meu coração de capa preta, com catorze centímetros de altura e nove de largura? Mudo ou quase mudo, se fosse encontrado pelo mais generoso dos estrangeiros que não soubesse uma sílaba de português. Foi aí que me lembrei da tarde de Janeiro em que preenchi os campos In case of loss, please return to e o As a reward: $. e lembrei-me, ainda, que nessa mesma página escrevi:
as minhas palavras ficam demasiado longe dos teus lábios para que as possas sentir.
Escrevi em português, obviamente. Que é a minha língua. E como esta, tinha dezenas de frases, dias à frente, dias atrás, na agenda. Não me lembrava de mais nenhuma ideia. Só desta. Talvez por ser mais do que uma ideia. Inteiramente, só me ocorria aquela frase. E o que me fez sorrir foi a possibilidade de, por aqueles dias, alguém telefonar para me fazer chegar o Moleskine. Pensei: dou a morada e peço o imenso favor de a enviarem à cobrança. Antes, agradeço mil vezes.
Acho que adormeci a pensar nisso, em como há filmes geniais a imitarem a vida.