sexta-feira, agosto 19

Se eu definisse o tempo como um rio



Se eu definisse o tempo como um rio,


a comparação levar-me-ia a tirar-te

de dentro da sua água, e a inventar-te

uma casa. Poria uma escada encostada

à parede, e sentar-te-ias num dos seus

degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:

«Não te apresses: também a água deste

rio é vagarosa, como o tempo que os

teus dedos suspendem, antes de virar

cada página.» Passam as nuvens no céu;

nascem e morrem as flores do campo;

partem e regressam as aves; e tu lês

o livro, como se o tempo tivesse parado,

e o rio não corresse pelos teus olhos.


Nuno Júdice

imagem: Tkachev Alexey (1922) Sergey Alexey (1925) Summer

segunda-feira, abril 18

Use o poema para elaborar uma estratégia



Use o poema para elaborar uma estratégia

de sobrevivência no mapa da sua vida. Recorra

aos dispositivos da imagem, sabendo que

ela lhe dará um acesso rápido aos recursos

da sua alma. Evite os atolamentos

da tristeza, e acenda a luz que lhe irá trazer

uma futura manhã quando o seu tempo

se estiver a esgotar. Se precisar de

substituir os sentimentos cansados

da existência, reinstale o desejo

no painel do corpo, e imprima os sentidos

em cada nova palavra. Não precisa

de dominar todos os requisitos do sistema:

limite-se a avançar pelo visor da memória,

procurando a ajuda que lhe permita sair

do bloqueio. Escolha uma superfície

plana: e deslize o seu olhar pelo

estuário da estrofe, para que ele empurre

a corrente das emoções até à foz. Verifique

então se todas as opções estão disponíveis: e

descubra a data e a hora em que o sonho

se converte em realidade, para que poema

e vida coincidam.


Nuno Júdice

quarta-feira, março 9

Estar contigo ao acordar


Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:
assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.

Nuno Júdice

poema desviado daqui

imagem: Vieira da Silva

quinta-feira, fevereiro 17

Jogo

Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

Nuno Júdice

Poema desviado daqui.

segunda-feira, janeiro 17

Variação sobre rosas

Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.
Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.
E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.

Nuno Júdice

quinta-feira, outubro 28

Lembro-me agora que tenho de marcar um


Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir até de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar; que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice
imagem: Jindrich Strei

domingo, agosto 29

Teoria da comunicação


Aceito o conceito de verosimilhança, a sua origem,
Numa relação do homem com a vida,
E na crença que é necessária,
A todos nós, para estabelecermos um contacto com
Os outros através da memória.
No entanto, nem tudo
Transporta essa verdade;
E para que possamos sentir
Uma experiência alheia, com tudo aquilo
Que o tempo levou, para sempre, no seu curso
Irreversível, teremos de viver cada sentimento como se nos
Pertencesse. Mas também sei que tudo está nas palavras; e que
Elas terão de ser escolhidas, uma a uma
Na mais exacta proporção do humano. Só assim,
Em perfeita concordância com as regras da poesia,poderei descrever,
Cada um dos pormenores do teu rosto, quando a luz
O ilumina, saindo de entre os cabelos que o envolvem,
Como sublime aparição. De facto, todos os adjectivos me parecem pobres para descrever o que és; e nenhum verso poderá
Traduzir a música da tua voz, ou a sua branda ternura
Nos meus ouvidos, nem o riso inesperado que me distrai
Do teu corpo. No fundo, isto podia levar-me a por em causa
O verosímil, e a distinguir entre a realidade vivida,
no instante mais alto do ser, e a imagem que guardamos
quando, em frente do papel nos dispomos a cantá-la.
Talvez
Isto me aproxime dos clássicos,
E da ideia platónica
Da oposição entre o divino e a sombra. No entanto, para
Quem teve nos braços a mulher que, para ele, foi deusa,
Ninfa, a mais bela das amadas, pouco importa a filosofia,
E muito menos a serenidade dos conceitos. O poema terá
De obedecer às imposições do amor;
E um desequilíbrio
De estrofes,
Uma vertigem de rimas,
Uma desordem de
Metáforas,
Fará viver para sempre o que só existe no tempo
De um sentimento que nos pertence,
A mim e a ti, mas
Que estas palavras levarão a todo lado,
Para que não cesse.

Nuno Júdice in O Estado dos Campos, D. Quixote, pag. 153/154
imagem: Isabel Lhano

terça-feira, janeiro 26

Para falarmos do meio de obter o poema


Para falarmos do meio de obter o poema,
a retórica não serve. Trata-se de uma coisa simples, que não
precisa de requintes nem de fórmulas. Apanha-se
uma flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem
no meio do campo, nem das que se vendem nas lojas
ou nos mercados. É uma flor de sílabas, em que as
pétalas são as vogais, e o caule uma consoante. Põe-se
no jarro da estrofe, e deixa-se estar. Para que não morra,
basta um pedaço de primavera na água, que se vai
buscar à imaginação, quando está um dia de chuva,
ou se faz entrar pela janela, quando o ar fresco
da manhã enche o quarto de azul. Então,
a flor confunde-se com o poema, mas ainda não é
o poema. Para que ele nasça, a flor precisa
de encontrar cores mais naturais do que essas
que a natureza lhe deu. Podem ser as cores do teu
rosto – a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,
ou o fundo dos teus olhos em que todas as cores
da vida se confundem, com o brilho da vida. Depois,
deito essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem
para as folhas, como a seiva que corre pelos
veios invisíveis da alma. Posso, então, colher a flor,
e o que tenho na mão é este poema que
me deste.

Nuno Júdice in Geometria Variável, Dom Quixote, Lisboa, 2005
imagem: Leila Pugnaloni

domingo, novembro 1

uma ode por entre as estações


O que corresponde ao reconhecimento do mundo, ou

àquilo que, para uns, é uma explicação da vida,

está contido nessa dimensão da natureza que nos é

inacessível: o instante em que a eclosão da flor

dá um sentido ao tronco que parecia seco. Esta mudança

nas coisas, trazendo aos olhos as cores que o fim

do temporal distribui pelo arco-íris, passa para

dentro de cada um, limpando o espírito de nuvens

- embora eu saiba que o vento, anunciado pelo

horizonte de linhas duras e nítidas, as voltará a

trazer. Porém, dizes-me, não são as nuvens negras

do inverno; e muito menos essa mortalha de cinza

com que o outono encobre os céus. Há convicções

que nos pertencem, respondo, como se a vida frugal

de quem segue a expectativa da noite não deixasse

entrever a luz que a madrugada concede aos que

cedem à insónia...Podíamos continuar esta conversa,

esperando que o rumo das palavras nos desvie para

o que verdadeiramente importa: nós ambos, neste

patamar de casa, sem saber para onde nos levam

as escadas. Lá em cima, porém, outras

portas parecem abrir-se; e para lá delas, outros

patamares,e outras perguntas. E em que obscuro

quarto, pergunto, está para surgir a flor que os teus

olhos anunciam? Ou antes: em que fim de corredor

a poderei colher, agora que a viagem vai a meio,

ou se aproxima do fim, segundo indicam

as linhas da mão? No fundo, é esta a primavera

que as frases constroem, quando percebemos que

é delas que nasceu o que as mãos procuram,

neste canto para além das linhas e dos mapas.


Nuno Júdice in O Estado dos Campos, p. 24 e 25, Dom Quixote, 2003
imagem: pintura de Vieira da Silva