
O que corresponde ao reconhecimento do mundo, ou
àquilo que, para uns, é uma explicação da vida,
está contido nessa dimensão da natureza que nos é
inacessível: o instante em que a eclosão da flor
dá um sentido ao tronco que parecia seco. Esta mudança
nas coisas, trazendo aos olhos as cores que o fim
do temporal distribui pelo arco-íris, passa para
dentro de cada um, limpando o espírito de nuvens
- embora eu saiba que o vento, anunciado pelo
horizonte de linhas duras e nítidas, as voltará a
trazer. Porém, dizes-me, não são as nuvens negras
do inverno; e muito menos essa mortalha de cinza
com que o outono encobre os céus. Há convicções
que nos pertencem, respondo, como se a vida frugal
de quem segue a expectativa da noite não deixasse
entrever a luz que a madrugada concede aos que
cedem à insónia...Podíamos continuar esta conversa,
esperando que o rumo das palavras nos desvie para
o que verdadeiramente importa: nós ambos, neste
patamar de casa, sem saber para onde nos levam
as escadas. Lá em cima, porém, outras
portas parecem abrir-se; e para lá delas, outros
patamares,e outras perguntas. E em que obscuro
quarto, pergunto, está para surgir a flor que os teus
olhos anunciam? Ou antes: em que fim de corredor
a poderei colher, agora que a viagem vai a meio,
ou se aproxima do fim, segundo indicam
as linhas da mão? No fundo, é esta a primavera
que as frases constroem, quando percebemos que
é delas que nasceu o que as mãos procuram,
neste canto para além das linhas e dos mapas.
Nuno Júdice in O Estado dos Campos, p. 24 e 25, Dom Quixote, 2003
imagem: pintura de Vieira da Silva