terça-feira, maio 31

Sabes de onde veio o teu nome?


[...]

Sabes de onde veio o teu nome?

Chegou ao mundo como o tigre e a esmeralda, cumpriu a

imensa viagem

pelos rios e pelas perguntas,

atravessou feridas e penínsulas, chegou tão devagar

como uma mulher ou uma espiga. Andou ardendo

pelas raízes, pelas algas, pela tristeza e pelo barro,

voltou cheio de paz e está agora dançando entre as minhas

pálpebras.

[...]

Joaquim Pessoa in NOMES, Litexa Editora, 2002

terça-feira, fevereiro 22

...e uma leveza tal ao teu andar...

De bruços me debruço mais ainda
até sentir os olhos tumefactos
para saber até que ponto é linda
a intrigante cor desses sapatos

que às tuas pernas dão um brilho tal
e uma leveza tal ao teu andar,
que eu penso (embora aches anormal)
que nunca te devias descalçar.

Também porquê, se já não há verdura
nem tu és Leonor para correr
descalça, no poema, à aventura?

O mais difícil, hoje, é antever
quem é que vai à fonte em literatura
e que água dá aos versos a beber.

Joaquim Pessoa
[no dia em que o Poeta está de parabéns!]

Desviado daqui

imagem:Richard Avedon

quinta-feira, janeiro 20

Eu sei, não te conheço mas existes.


Eu sei, não te conheço mas existes.
por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.
[...]

Joaquim Pessoa

domingo, outubro 17

Abraça-me

Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele,

e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos.

Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser

este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na

palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos

para provar o sabor que tem carne incandescente das estrelas.

Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti possa buscar

o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me

com os teus antigos braços de criança

para desamarrar em mim a eternidade, a soma formidável

de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram.

Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor.

Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos,

para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros

pequeninos. Só essa água fará reconhecer

o mais profundo, o mais imenso amor do universo,

e eu quero que dele fiquem a saber

até as estrelas mais antigas e brilhantes.

Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.

Uma vez que nem sei se tu existes.

Joaquim Pessoa
[Do livro a publicar, ANO COMUM]

terça-feira, outubro 5

Quero-te para além das coisas justas


Quero-te para além das coisas justas

e dos dias cheios de grandeza.

A dor não tem significado quando ma roubam as árvores,

as ágatas, as águas.

O meu sol vem de dentro do teu corpo,

a tua voz respira a minha voz.

De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas

dos beijos? Discuto esta noite

apenas o pudor de preferir-te

entre as coisas vivas.

Joaquim Pessoa

imagem: Ramona G.

segunda-feira, setembro 27

Outono


Uma lâmina de ar

Atravessando as portas. Um arco,

Uma flecha cravada no outono. E a canção

Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.

E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como

Uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.

É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza

Quando saio para a rua, molhado, como um pássaro.

Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se

Da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.

Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede

Cumprimenta o sol. Procura-se viver.

Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.

Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se

Como se, de repente, não houvesse mais nada senão

A imperiosa ordem de (se) amarem.

Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.

Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.

Não há um nome para a tua ausência. Há um muro

Que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho

Que a minha boca recusa. È outono.

A pouco a pouco despem-se as palavras.

Joaquim Pessoa

quarta-feira, setembro 1

Se ao menos soubesses

Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse

ou se ao menos me desses as mãos como quem beija

e não partisses, assim, empurrando o vento

com o coração aflito, sufocado de segredos;

se ao menos percebesses que eram nossos

todos os bancos de todos os jardins;

se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo

que ambos empunhámos na cidade clandestina

Quando as manhãs cheiravam a óleo e a flores

e o inverno espreitava ainda nas esquinas como uma criança tremendo;

se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos

para guardar o teu corpo;

se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos

onde o teu rosto se esconde no meu rosto

e a minha boca lembra a tua despedida,

talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer

essa cor perdida nos teus olhos.

Joaquim Pessoa

imagem: Tozé