domingo, outubro 16

escrevo-te a sentir tudo isto


escrevo-te a sentir tudo isto

e num instante de maior lucidez poderia ser o rio

as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia

poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto

ao fogo

e deambular trémulo com as aves

ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva do lábios

poderia imitar aquele pastor

ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a

sua imobilidade

habito neste país de água por engano

são-me necessárias imagens radiografias de ossos

rostos desfocados

mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos

repara

nada mais possuo

a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã

repara

como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar



Al Berto in O Medo, pag.275, Assírio & Alvim, 2005

segunda-feira, maio 30

Enquanto dormes


Enquanto dormes constrói-me um rosto de luz, no limbo do teu sonho. Toca-o e acorda-me. Caminha comigo, peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.

Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia que a fuga era possível pelas estradas de giestas em direcção ao mar. Dorme e consente que o meu coração escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e segundos de asfaltos.

Al Berto

sábado, fevereiro 26

Dá-me tu um nome, para poder ficar contigo


[...]
-Vou guardar as tuas mãos na paixão que tenho por ti, mas não te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber. Chama-me o que quiseres, dá-me tu um nome para que possamos amarmo-nos. Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui. Pertencia a outra paixão, e já a esqueci. Dá-me tu um nome, para poder ficar contigo.[...]

Al Berto

sábado, novembro 20

lembro-me

lembro-me que tínhamos fome havia três dias
encostada ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia
e o maço de português suave filtro
...a escuridão não era só exterior
conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto
tornámo-nos murmurantes
e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos
cruzámos olhares cúmplices
falámos muito não me recordo de quê
e no calor dos corpos crescia o desejo
caminhámos pela cidade
eu metia as mãos nas algibeiras
onde tacteava tudo o que guardara e possuía
um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas
sentia-me feliz por quase nada possuir
a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim
gesticulava para me dizer que estávamos vivos
e apaixonados

Al Berto

imagem: Antero Takala

sábado, outubro 16

Tentativas para um regresso à terra

O sol ensina o único caminho

a voz da memória irrompe lodosa

ainda não partimos e já tudo esquecemos

caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente

os corpos diluem-se na delicada pele das pedras

falamos rios deste regresso e pelas margens ressoam

passos

os poços onde nos debruçámos aproximam-se perigosamente

da ausência e da sede procurámos os rostos na água

conseguimos não esquecer a fome que nos isolou

de oásis em oásis



hoje

é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar

o peso de súbitas cassiopeias nos olhos

quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco a planície



caminhamos ainda

sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos

a fuga só é possível dentro dos fragmentados corpos

e um dia... quem sabe?

chegaremos

Al Berto

quinta-feira, setembro 30

há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida


há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto

imagem: Andrew Wyeth

quinta-feira, junho 11

Vestígios


noutros tempos

quando acreditávamos na existência da lua

foi-nos possível escrever poemas e

envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído

pelas salivas proibidas - noutros tempos

os dias corriam com a água e limpavam

os líquenes das imundas máscaras

hoje

nenhuma palavra pode ser escrita

nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras

ou se expande pelo corpo estendido

no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e

obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua

e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo

continuamos a repetir os gestos e a beber

a serenidade da seiva - vamos pela febre

dos cedros acima - até que tocamos o místico

arbusto estelareo mistério da luz fustiga-nos os olhos

numa euforia torrencial


Al Berto, in Horto de Incêndio, pag. 11/12, Assírio e Alvim, 1997
imagem/pintura: Marc Chagall