quinta-feira, dezembro 1

E os livros...


[...um belo fim de tarde, este...]


E os livros são um contributo válido para esse aumento de lucidez?

GMT: Acredito que sim. Gosto muito de cinema ou artes plásticas, por exemplo, mas os livros pertencem a outra ordem. São uma máquina de lentidão mas também de isolamento, pensamento e silêncio. O que os livros têm de extraordinário é que podemos estar no meio de uma multidão de um milhar de pessoas e, mesmo assim, estarmos totalme...nte isolados. Não há nenhuma máquina capaz de fazer isso. Quando levamos um livro no bolso é como se carregássemos um templo. O que fazemos quando abrimos um livro é muito semelhante à atitude que adoptamos ao entrar numa igreja. Em ambas as situações, baixamos logo o tom de voz. A igreja também é uma máquina de desacelerar e reflectir. Se alguém se limitasse a ler apenas, recusando as outras artes, seria, ainda assim, uma pessoa densa. O cinema, o teatro, as artes plásticas dão-nos muito - mas a literatura é talvez algo de mais estrutural.

Fonte: aqui

imagem: Artur Machado

sábado, novembro 19

«há a lista dos dias, como o índice numa obra»


«há a lista dos dias, como o índice numa obra» [Maria Gabriela Llansol]

Eis os velhos e a sua ementa nostálgica: a lista dos dias com ligações habituais a determinados sentimentos.

A vida como obra individual que escapa ao controlo do artista alheio que vem esculpir a sua vontade efémera sobre o nosso percurso.

Obra individual que respira e não só. Eis estar vivo.



Gonçalo M. Tavares in Breves notas sobre as Ligações, pag.17, relógio d'água, 2009



imagem: Matisse por Robert Capa

quinta-feira, novembro 17

«a corrida quieta da leitura» [Maria Filomena Molder]


Cada livro dá uma velocidade de leitura; como um carro; um livro deveria ter na capa ou na contracapa indicações de velocidade máxima e mínima de leitura: não ler a menos do que vinte páginas por hora, não ler a mais do que quarenta páginas por hora. ( ideia a desenvolver).

Claro que a velocidade engana: livros imbecis, mas também livros perfeitos, podem ser lidos à mesma velocidade, suponhamos: cem páginas por hora. Não é tanto a velocidade potencial de leitura de um livro que dá a sua qualidade, é mais o local aonde se chega com essa velocidade.

E que importa estar num carro que vai a um grande velocidade, se ele chega a um sítio que eu não desejo (rapidamente, é certo)?

E que importa estar num carro que vai a uma velocidade para que os seus passageiros possam apreciar a paisagem, se a paisagem não é relevante?

Contemplar quando estamos em viagem se a coisa contemplada for interessante.

Claro, dirão, ler é bom para os sentimentos, para os abanar: por favor, não introduza dados quantitativos no prazer da leitura.

Porém, não esquecer: o que fez cada um com o que leu à velocidade que leu?

Paisagens e sítios de chegada.

Contabilidade económica da leitura.

(Não podemos ler tudo. Somos mortais, meu caro.)


Gonçalo M. Tavares, in Breves notas sobre as Ligações, pag. 65,  relógio d'água, 2009

imagem: Novak

quarta-feira, novembro 16

...já está na agenda?


Sábado, 19 de novembro, Palacete dos Viscondes de Balsemão (à Praça de Carlos Alberto), no Porto. Com Gonçalo M. Tavares.

sexta-feira, setembro 2

Um poema não é uma coisa...


Um poema não é uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoço. A vida de uma pessoa não tem material semelhante a nada que conheças. Existir é feito de peças impossíveis de copiar. E a poesia não entra nesse material único - a vida de uma pessoa - como o avião no ar ou o acidente do avião na terra dura. Um poema não é manso nem meigo, não é mau nem ilegal.


Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. O que é a fita métrica comparada com algo intenso? Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa. Muda de vida ou, claro, muda de poema.

Gonçalo M. Tavares, in A Perna Esquerda de Paris

imagem: Gerard Castello-Lopes

quarta-feira, março 16

Às vezes tenho medo, muito medo.


Às vezes tenho medo, muito medo.

Às vezes sofro.

Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na

possibilidade de as perder.

Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.

Pode não ser um amigo ou familiar.

Posso estar a vê-lo pela primeira vez.

Mas fico incomodado.

Aquela doença pertence-me.

Todas as doenças pertencem a toda a gente.

Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.

Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.

Às vezes sinto isso muito,

outras vezes sinto menos.

Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,

brincar com a poesia,

com a filosofia e com as palavras.

Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.

Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo

de querer ser inteligente.

Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.

Não fazem sentido as lógicas,

as filosofias,

as discussões.

Todo o nosso corpo sente.

E o que resta? Nada.

Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.

Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe

que amo e está a envelhecer.

Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.

Só aquele amigo que se tornou amargo

porque a mulher o deixou.

Só o amor e a falta de amor.

As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,

as mulheres e os homens que enganam.

Os amigos que deixam de o ser,

alguns inimigos que morrem, e temos pena.

Que importa o resto?

Onde está o livro importante?

O filme que resolve?

Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.

Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às

mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,

mas que adianta?

Estamos sozinhos.

Se não estamos, vamos estar.

Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.

Vão morrer ou nós vamos morrer.

Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de

lhes querer telefonar.

Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.

Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes

descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.

Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não

adianta nada e nada impede.

Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.

Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,

tentamos ter ideias, tentamos distrair as pessoas, tentamos

fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e

isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada,

não resolve nada,

não adianta nada.


Gonçalo M. Tavares in O homem ou é tonto ou é mulher

imagem: Claudia Pinto

quarta-feira, março 9

A biblioteca do Senhor Juarroz


O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos.
O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, Porém, foi descoberto.
O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro.
Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei!
A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro.
Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei!
No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel.
Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática capaz de desvendar a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2 1 9 1 30 1 93
Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, um bloco gigante coberto de números, disse: Já sei! E apresentou depois a fórmula da série que baseava a organização da biblioteca.
O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo. Basta!
No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto.
Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.
Gonçalo M. Tavares in O Senhor Juarroz

terça-feira, fevereiro 8

...é por estas e por outras...


Acho que em Portugal há um julgamento estranho da modéstia. Batem-se palmas a quem basicamente diz que não é muito bom a fazer o que faz. E quando alguém diz que tem confiança no que faz, utiliza-se uma palavra pejorativa: arrogante. Eu claramente tenho confiança no que faço, e nesse aspecto não sou modesto. Agora, precisamente porque tenho essa confiança não me passa pela cabeça falar mal de alguém. Não por eu ser um coração maravilhoso, mas porque seria perder tempo precioso para aquilo que tenho de fazer.
Gonçalo M. Tavares, in Mil Folhas, Público, 2005


[...que o acho um grande Senhor. Tal e qual os Senhores que escreve...]

terça-feira, janeiro 4

Alguma delicadeza

A mulher é certamente um elemento humano fora do comum: as casas só não envelhecem porque ela existe. Um cuidado feminino suporta a construção (como o cimento). Uma casa só não cai, se dentro dela existir alguma delicadeza.
Gonçalo M. Tavares in Uma Viagem à Índia

segunda-feira, novembro 22

O coração necessita de afinação, como os rádios

O coração necessita de afinação, como os rádios.
Por vezes, em simultâneo, executamos duas canções,
e uma perturba a outra,
e não é bom para os ouvidos.
Mas qual o botão que afina o coração?
...Não é assim tão fácil.
Gonçalo M. Tavares

Aprender a Rezar na Era Técnica

«Acabo de saber. Gonçalo M. Tavares, com o seu romance Aprender a Rezar na Era da Técnica vence em França o Prémio do Melhor Livro Estrangeiro 2010. O livro já havia sido, no início deste mês, um dos cinco finalistas dos Prémios Féminin e Médicis. O romance agora eleito como o melhor livro estrangeiro publicado em França em 2010 (na tradução de Dominique Nédellec «Apprendre à prier à l’ère de la technique ») foi publicado em Portugal em 2007.»
Isabel Coutinho
Fonte: aqui

terça-feira, novembro 2

"Aproximo-me apenas daquilo que admiro"


«As minhas aproximações são sempre amorosas, aproximo-me apenas daquilo que admiro.»

«O escritor tem uma responsabilidade, não apenas em relação ao momento presente e ao que aí vem, mas, antes de mais, em relação ao passado. As gerações passadas deixaram-nos muitos sinais. É responsabilidade do escritor contemporâneo estar atento aos sinais que os escritores clássicos nos deixaram...»

«"Os Lusíadas" é uma obra fabulosa, de uma grande riqueza; e ainda hoje dá enorme prazer ficar diante daquilo que percebemos que não envelhece. O meu prazer na leitura, ainda mais em relação aos clássicos, é, acima do mais, estético, e não ideológico...»


«"Uma Viagem à Índia" acompanha passo a passo, fragmento a fragmento, por vezes linha a linha, os conflitos físicos, os relatos sobre o passado, os tumultos, os enganos, as entradas em cena do narrador, etc, de "Os Lusíadas".»

«A experiência tem um forte valor moral e intelectual. Mas a modernidade alterou um pouco o valor e os termos dessa experiência. Classicamente a experiência pressupunha deslocação física. Se possível, a grande viagem. Na modernidade, a experiência é muitas vezes mental e, neste sentido, esta epopeia ou anti-epopeia é muito mais mental do que física.»

«Uma personagem sem qualidades, mas em queda. E o que parece é que é uma personagem que se entedia com a queda. Não tem medo, não fica desesperado, não faz um balanço último da sua vida. Não passa tanto por questões políticas, colectivas, por eventuais falhanços ideológicos ou do capitalismo. É muito mais uma questão centrada no indivíduo. O grande movimento do século XXI parece-me, é o da queda.»

«A tradição romântica do amor coloca-o numa espécie de círculo em redor de duas declarações - amo-te/eu também te amo ou amo-te/não te amo - e estas duas declarações impõem-se a tudo o resto: o mundo desaparece. Esta embriaguez não permite o desvio do olhar, nem a desatenção mínima. E estarmos obcecados por uma parte é estarmos desatentos a tudo o resto.»
Fonte: AQUI, uma entrevista de Pedro Mexia a Gonçalo M. Tavares

sábado, outubro 23

Também o quero...

[ ...vi-o ali, no CHEIRO DOS LIVROS e tive de o trazer... mesmo assim, virtual...]

A vida, meu caro, é ilegível. Acontece
e desaparece. Não há inteligência
que a descodifique: vem em linguagem-nada,
surge no corpo como surge o dia, e como
se dia e vida individual fossem materiais paralelos.
...A vida não surge em prosa
nem em poesia — e a existência não fala
inglês, apesar de tudo. A natureza dos acontecimentos
resiste às invasões matreiras da publicidade e
dos filmes. Já não é mau.

Gonçalo M. Tavares, in Uma Viagem à Índia

sábado, outubro 9

Há exercícios para treinar a verdade

Há exercícios para treinar a verdade como, por exemplo, ter medo. Ou então ter fome. Depois restam exercícios para treinar a mentira: todos os grupos são isto, e todos os negócios. Estar apaixonado é a outra forma de exercitar a verdade.


Gonçalo M. Tavares in Um Homem: Klaus Klump, Caminho, 2003

imagem:Helmut Newton

segunda-feira, setembro 6

Um barulho que se mantém enquanto alguém o lê

[...]
Os jornais, por via das notícias, produzem um barulho fixo. Um barulho que se mantém enquanto alguém o lê. Mas na notícia acontece isto:os sofrimentos individuais e as alegrias íntimas desaparecem, tudo se torna propriedade colectiva: o jornal como teoria geral da inexistência do indivíduo. Só existe pessoa-acontecimento se existir pessoa-espectador: a privacidade absoluta, verdadeira, a individualidade pura, não são acontecimentos, são não-acontecimentos, isto é, à letra: a individualidade (a de zero espectadores) não acontece. Quase que se poderia afirmar que a existência individual e privada será uma invenção, precisamente individual. Como provar a existência de momentos puramente íntimos, não testemunhados por nínguém, a não ser pela consciência do próprio? Não podemos provar, só acreditar. Acredito que o outro existe enquanto indivíduo, acredito: crença; não sei: não é um conhecimento. Mas de mim próprio sei: conheço os meus momentos individuais, e apenas posso esperar que os outros acreditem na existência de tal coisa. Toda a parte da nossa vida que é testemunhada constitui o modelo do jornal: vejam o que acontece ou aconteceu. E só existe na História. E o que fica de fora são os indivíduos. [...]

Gonçalo M. Tavares in Um Homem: Klaus Klump, pag. 115, Caminho, 2003
imagem: Crete. Chania. 1962. Man reading newspaper. © Costa Manos/Magnum Photos