domingo, dezembro 30
Passei toda a noite, sem dormir,
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
Alberto Caeiro
Escrito/editado por Marta 1 Terráqueos
quinta-feira, dezembro 27
Um dos que me calhou no sapatinho...
Sinopse: «Todos os dias, María Dolz toma o pequeno-almoço no mesmo café de Madrid. Entretém-se a observar um casal que cumpre a mesma rotina. Parecem formar o casal perfeito, profundament...e enamorado. Até que um dia o casal não aparece no café, o que deixa María com uma estranha sensação de perda.
Só mais tarde, quando vê uma fotografia do homem numa página de jornal – deitado no chão, esfaqueado, minutos antes de morrer – é que descobre que os amantes que tanto gostava de contemplar se chamavam Luisa e Miguel. Quando a mulher volta ao café, alguns dias depois, María aborda-a para lhe apresentar as suas condolências e entra assim numa espiral que a levará a descobrir mais sobre a morte aparentemente acidental de Miguel.
Partindo do mistério em redor da morte de Miguel, Os Enamoramentos revela-nos muito mais do que a verdade sobre esse trágico evento. É, acima de tudo, uma investigação metafísica sobre a vida, a morte, o amor e a moralidade. E um fascinante tratado sobre o estado de enamoramento, um estado positivo e redentor que parece justificar quase todas as coisas: acções nobres e desinteressadas, mas também as maiores crueldades.»
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
quarta-feira, dezembro 26
O Natal não é ornamento: é fermento
É um impulso divino que irrompe pelo interior da história
Uma expectativa de semente lançada
Um alvoroço que nos acorda
para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade
O Natal não é ornamento: é fermento
Dentro de nós recria, amplia, expande
O Natal não se confunde com o tráfico sonolento dos símbolos
nem se deixa aprisionar ao consumismo sonoro da ocasião
A simplicidade que nos propõe
não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
não são os da coreografia previsível das convenções
O Natal não é ornamento: é movimento
Teremos sempre de caminhar para o encontrar
Entre a noite e o dia
Entre a tarefa e o dom
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Entre a palavra e o silêncio que buscamos
Uma estrela nos guiará.
José Tolentino Mendonça
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
sábado, dezembro 15
a noite pede música
They say life is never fair
That love's so far away
But I know babe, it's so true
It's so true
I know that you feel so alone
And you cry yourself to sleep
But I know babe, it's so true
It's so true, true, true
They say fate plays cruel jokes
And keeps love from you
But I know babe, it's so true
It's so true
I know that you feel so alone
And you cry yourself to sleep
But I know babe, it's so true
It's so true, true, true
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
sexta-feira, dezembro 7
Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de ser
contra a maneira do tempo
esta maneira de ver
o que o tempo tem por dentro.
Aristóteles diria
entre dois goles de chá
que o melhor ainda será
deixar o tempo onde está
pô-lo de perto no tema
e de parte na poesia
para manter o poema
dentro da ordem do dia.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só.
Ele sabia que o poeta
depois de tudo inventado
depois de tudo previsto
de tudo vistoriado
teria de fazer isto
para não continuar
com que já estava acabado
teria de ser presente
não futuro antecipado
não profeta não vidente
mas aço bem temperado
cachorro ferrando o dente
na canela do passado
adaga cravando a ponta
no coração do sentido
palavra osso furando
pele de cão perseguido.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de riso
que é a mais original
forma de se ter juízo
e ser poeta actual.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
também diria antes só
do que mal acompanhado
antes morto emparedado
em muro de pedra e cal
aonde não entre bicho
que não seja essencial
à evasão da palavra
deste silêncio mortal.
Ary dos Santos
Escrito/editado por Marta 1 Terráqueos
a noite pede música
...porque o poeta Ary dos Santos nasceu dia 7 de Dezembro...
Escrito/editado por Marta 1 Terráqueos
Anna Karénina
ação, descreve, em nítido contraste, dois amores: o amor carnal do casal Anna-Vronski (lutando por entre as suas emoções sensuais, mas fiéis e espiritualmente puras) e, do outro lado, o autêntico Amor cristão, como Tolstoi o quis chamar, do casal Kiti-Lévin, com os bens de natureza sensual ainda presentes, mas equilibrados, e em harmonia numa atmosfera de responsabilidade, carinho, verdade e alegria familiar.» [Do Posfácio de Vladimir Nabokov]
Escrito/editado por Marta 2 Terráqueos
é por isso que nunca vou ao cinema
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
quarta-feira, dezembro 5
terça-feira, dezembro 4
sábado, dezembro 1
sexta-feira, novembro 30
Dia das Livrarias
Portugal associa-se a iniciativa que nasceu em Espanha
Cerca de uma dezena de livrarias portuguesas associa-se hoje ao Dia das
Livrarias, evento organizado em Espanha e que se estende a Portugal por
iniciativa da Fundação José Saramago e do movimento Encontro Livreiro.
A extensão da ideia espanhola para Portugal é, segundo a fundação, incentivar
as livrarias, sobretudo as independentes e as de mais pequena
dimensão, a terem mais visitantes, “contrariando a tão real crise que leva
tantos a temer o fecho iminente desses espaços de cultura”.
O movimento Encontro Livreiro, por seu lado, dá conta, no seu site, de
pelo menos uma dezena de livrarias a associarem-se ao evento, entre as
quais a Fonte das Letras, de Montemor-o-Novo, a Pó dos Livros, GATAfunho
e Assírio & Alvim, de Lisboa, a Traga-Mundos, de Vila Real, e a centenária
Livraria Esperança, do Funchal.
Em Portugal, o Dia das Livrarias acontece na data em que morreram os
escritores Fernando Pessoa (30 de Novembro de 1935) e Fernando Assis
Pacheco (30 de Novembro de 1995).
Em Espanha, é a segunda vez que a Associação de Livrarias e o Colégio de
Escritores organizam o Dia das Livrarias, para dar a conhecer “o prazer
pela leitura e pelos livros”, e para os livreiros mostrarem aos visitantes “os
livros que precisam e também os que eles desconhecem que precisam”.
A ideia é recordar “a função social e cultural” de uma livraria na sociedade,
lê-se no manifesto espanhol. » Fonte: Página 1
Escrito/editado por Marta 2 Terráqueos
terça-feira, novembro 27
porque sim
"O mundo cinéfilo comemorou, ONTEM, 70 anos sobre a estreia de uma das jóias maiores da História da Sétima Arte. «Casablanca», de Michael Curtiz, viu o grande ecrã pela primeira vez em Nova Iorque, a 26 de Novembro de 1942, em plena II Guerra...Mundial. A história dos desencontros amorosos e sacrifícios dos antigos amantes Rick (Humphrey Bogart) e Ilsa (Ingrid Bergman) correu mundo, bem como a voz de Sam (Dooley Wilson), no standard "As Time Goes By", revisitado vezes sem conta, nos últimos 70 anos."
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
sábado, novembro 17
Possibilidades
Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não os escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter objecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fadas de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
a outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.
Wislawa Szymborska
Escrito/editado por Marta 2 Terráqueos
Aves
Comprei-o ontem. Para mim e para oferecer. Fala da capacidade de sonhar. De continuar a sonhar. E fica-se com ele horas a fio. A folhear muito lentamente. É tão lindo! É lindíssimo. E cheira muito bem. A livro impresso. E traz uma ilustração. Se a quisermos colocar na parede ou no tecto. Sei lá bem. E eu quero. Só não sei onde. Se na parede, se no tecto. É um livro de tamanho certo para pousar no colo. É um livro que dá vontade de acariciar. De passar a mão pelas penas muito macias das aves. Enquanto a comoção nos passa e a sensação de espelho desaparece. É que é tremendamente humano. E o mais engraçado é que não estou a exagerar. Só não sei é dizer isto de outra maneira.
Fonte: aqui
Escrito/editado por Marta 3 Terráqueos
Pensar em ti é coisa delicada
Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluír de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.
Um pesar grãos de nada em mínima balança
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.
Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir,
Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas como o pensar te pudesses partir.
António Gedeão
Escrito/editado por Marta 3 Terráqueos
Na lista dos livros que quero ler
Esse nome, António Gedeão, simultaneamente vulgar e também, de certo modo, estranho, aconteceu surgir-lhe no pensamento quando, em 1956, com cinquenta anos, se dispôs a revelar o seu primeiro livro, Movimento Perpétuo, publicado pela Atlântida editora, em Coimbra. Não queria que ninguém soubesse da sua identidade como poeta. Para isso, era necessário apresentar-se com um pseudónimo de tal modo vivo, de tal modo invulgar que ele próprio não se reconheceria às primeiras. Medo? Medo do público leitor? Medo de si próprio? As hesitações para esta primeira publicação foram imensas! E o livro foi publicado no mais completo segredo, tudo combinado com o editor. Ninguém saberia que António Gedeão era Rómulo e que Rómulo era António.» Cristina Carvalho
Fonte: aqui
Escrito/editado por Marta 2 Terráqueos
segunda-feira, novembro 5
Karl Kraus no Gato Vadio
Karl Kraus (1874-1936) é um dos autores mais relevantes do período da “Viena de 1900”. Além de milhares de textos polémicos e de glosas e ensaios satíricos, publicou também textos líricos, aforismos e vários dramas, dos quais sobressai o monumental “Os últimos dias da humanidade”, escrito ao longo da Primeira Guerra Mundial e vindo a lume, na sua versão definitiva, em 1922."
Escrito/editado por Marta 3 Terráqueos
Rosto da muralha
um homem com o coração nas mãos
correu pela borda da noite
para oficiar as trevas
havia uma guerra anunciada
e três guerras por resolver
em toda a parte
tinham mudado os sinais
um homem abraçado à sua própria sombra
estendia o coração
para resolver o caminho
era difícil perceber
por que começavam os dias a meio das noites
era difícil perceber
a noite única que testava
no lugar do coração antigo
um homem vai bêbado de seu próprio sangue
e mal ouve a voz de anunciar princípios
perdeu a capacidade do gesto
não consegue deixar o rasto
de sua mão de sangue na face da muralha
as mãos já não são mãos
mas um tecido de veias
que pingam no útero da floresta
um homem arrancou o seu próprio coração
p'ra fundar a noite
encontrar o caminho
descobrir a voz
construir a fala
deixar um gesto de prata
no rosto da muralha
Ana Paula Tavares
Escrito/editado por Marta 1 Terráqueos
domingo, novembro 4
quinta-feira, novembro 1
O tempo passa ? Não passa
O tempo passa ? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.
O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.
Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.
O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.
São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.
E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
quarta-feira, outubro 31
domingo, outubro 21
A meu favor tenho o teu olhar
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Manuel António Pina, in Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância
Escrito/editado por Marta 4 Terráqueos
porque sim
O mais importante na vida
É ser-se criador – criar beleza.
Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.
Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir a voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.
Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.
António Botto
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
segunda-feira, outubro 15
A gratidão é o que há de menos efémero na nossa vida
(...) Um livro que se escreve é sempre uma confissão espontânea; por depravada que pareça uma narrativa, o livro não corresponde a um acto depravado, porque é um acto de liberdade. O que...leva a escrever é a convicção de realizar algo de bom mesmo quando os méritos são poucos ou o orgulho é soberano. O escritor espera sempre que a inspiração supere a sua impotência e o faça merecedor da graça divina da arte e da vontade para a exercer.
No meu caso, aqui solicitado, todos os meus livros são um exercício de confissão espontânea. Os defeitos que se notam neles, defeitos que transbordam da espontaneidade (falta de espírito académico, lirismo fútil e fluência de palavras que despistam os leitores dos elementos inconscientes), são uma prova de insubmissão. A insubmissão pode significar amor, assim como a submissão. A insubmissão, em certas vidas criativas, comporta um sadismo pueril que nunca é completamente extirpado das sociedades, mesmo as mais civilizadas. A confissão espontânea que é o livro de ficção, em geral beneficia desse sadismo pueril. Exerce uma apaixonada agressão sobre o mundo porque se sente motivo de amor. A confissão seduz pelo facto de deixar à margem da submissão um pequeno toque de insubmissão.
Quero dizer que, ao despertar desta consagração que me fazem, eu sou insubmissa. A gratidão é uma experiência subjectiva, como a fé. É mesmo um acto de fé que a substância dum ser humano nunca pode mudar. Nela não há incerteza; é feita de pertinência, faz parte da interpretação dos meus livros; faz parte do nosso juízo sobre as obras humanas calçadas com a botinha de bronze, emergência da imortalidade mas que o não é. A gratidão é o que há de menos efémero na nossa vida. Por ela, somos provavelmente menos livres, mas também menos sós. Isto é bom.
Agustina Bessa-Luís
in Contemplação Carinhosa da Angústia, pag.195, Guimarães Editores
[...no dia em que a imensa Agustina faz 90 anos. parabéns!]
Escrito/editado por Marta 7 Terráqueos
quinta-feira, outubro 11
"As Ondas", de Virginia Woolf
Por Alexandra Lucas Coelho in Mil Folhas, Público
Poucos romances, em todo o século XX, nos mostraram tão intensamente como a literatura podia ser ainda uma coisa nova e viva
Podemos começar pelo que este livro não é, para arrepiar caminho. E para isso, tomemos de empréstimo o que dele disse Jorge Luis Borges: "Não há argumento, não há conversa, não há acção." Era um cumprimento. E Virginia Woolf estaria de acordo. Assim, solto da ganga romanesca e dentro da cabeça que pulsa, o quis ela, desde o princípio.
Em Novembro de 1928 - tinha ela 44 anos, e era já a autora aclamada de "Orlando, "Mrs. Dalloway" ou "Rumo ao Farol", três dos seus mais notáveis romances -, escreveu Virginia Woolf no seu diário: "Quero eliminar todo o desperdício, todas as coisas mortas, o supérfluo: dar o momento inteiro, com tudo o que faz parte dele. Digamos que o momento é um misto de pensamento, de sensação, a voz do mar... Esse medonho assunto da narrativa realista, avançar do almoço para o jantar, é falso, irreal, meramente convencional. Porquê admitir algo na literatura que não seja poesia - até à saturação, mesmo? É isso que quero fazer em 'As Mariposas'"
"As Mariposas" foi, entre 1928 e 1929, o título provisório desse projecto, dessa "tentativa completamente nova" no interior da literatura. Depois, quando Virginia Woolf se lembrou "de repente" (a expressão é dela) que as mariposas só voam de noite, mudou o título para "As Ondas". E no Outono de 1929 começou a escrever aquela que viria a ser considerada por muitos (não Borges, que preferia "Orlando") a sua obra-prima.
Bernard, Neville, Louis, Jinny, Susan, Rhoda. Seis personagens, seis vozes que falam, não umas com as outras, não para fora, mas dentro de si - há ainda uma sétima personagem, Percival, que a todos fascina, mas que nunca escutaremos.
Cada fala destas seis personagens (seis faces de um rosto único?) é a torrente caótica e fabulosa de imagens e palavras que se forma dentro da cabeça em minutos, em segundos. São eles - as suas vozes, sempre em discurso directo - que nos levam através do seu percurso, da infância à maturidade, em nove etapas. O livro percorre, nessas etapas, o tempo da vida humana.
Mas há um outro tempo, paralelo, sem personagens, sem fala, antes de cada etapa: uma descrição da viagem que o sol faz ao longo de um dia, e do efeito desse movimento numa paisagem com mar. As ondas quebram-se assim, sincopadamente, tal como bate o coração.
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
O tigre na rua
Pensei muito: como é que apareceu um tigre na rua?
pensei pensei,
pensei pensei,
pensei pensei,
pensei pensei,
soprou o vento neste momento,
e eu esqueci o pensamento.
Por isso continuo sem saber como é que na rua terá aparecido um tigre.
Daniil Harms in O tigre na rua e outros poemas; tradução - Nina e Filipe Guerra
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
quarta-feira, outubro 10
A personagem veio de lá de trás
A personagem veio de lá de trás
pelo meio da floresta de cadeiras
e foi sentar-se na primeira das filas
ao lado da outra personagem.
As luzes apagaram-se de repente
e de repente as personagens acederam à luz
e saltaram incandescentes para o palco.
Para um palco que ninguém viu então,
para um palco que nunca ninguém viu.
Pedro Tamen
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos