quinta-feira, julho 16

Imaginava eu

«Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é?
Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia.
Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz com a morada e o dia.

Almada Negreiros in Obras Completas, vol. I Poesia, Biblioteca de Autores Portugueses, pag. 153
imagem: desenho de Almada Negreiros

sábado, maio 2

...é tudo tão verdade!


Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!

Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!

Tinta cor de sangue encarnada, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!

Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando eu voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.

Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.

Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!

Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.

Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!


Almada Negreiros
[mãe. amo-te. tudo.tanto. infinitos íssimos.para sempre.és linda. muito minha. mãe]

terça-feira, abril 21

Eu amo a Lua do lado que eu nunca vi

[...] Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem nos meus sonhos. Eu amo a Lua do lado que eu nunca vi. [...]

[excerto Canção da Saudade]
Almada Negreiros in Obras Completas, Vol. I, pag. 71, Imprensa Nacional Casa da Moeda

imagem: Sonja Valentina