quinta-feira, junho 7

Os Cavalos de Tarquínia



 
 
Sempre achei que mais ninguém o tinha lido, apesar de o ter emprestado e de nunca mais o reaver. Nunca soube se a Dona Isabel gostou dos Cavalos de Tarquínia. Também nunca mais soube dela. Guardo o seu silêncio, os seus cabelos grisalhos, o modo como atendia o telefone. Gosto de pensar que de mim, a Dona Isabel guarda bem o meu livro. O primeiro que li de Margarite Duras. Tinha 18 anos.


Mas sempre achei que mais ninguém o tinha lido, até há poucos minutos. Há poucos minutos eu disse - meu deus, os Cavalos de Tarquínia, Tiago! Disse alto como se o Tiago estivesse ali. E fui memória adentro . Como se todos os cavalos da memória fossem alados.

A Dona Isabel recostada na cadeira, a ler nos intervalos do silêncio do telefone.
Um silêncio muito diferente do seu.

Depois outra memória e ainda outra, mais clara, levou-me pelo tempo.

Perguntei-lhe, quando pediu Campari se tinha lido os Cavalos de Tarquínia. Disse-me que não. E acho que foi a partir daí que criei e mantive essa ideia de que mais ninguém o teria lido a não ser eu. Coisas que nos ficam até prova em contrário, como agora.
Naquela altura eu queria dizer -lhe o quanto tinha gostado do livro; o quanto tinha gostado da densidade, da espessura das personagens dos Cavalos de Tarquínia. Queria ter-lhe falado da vida e da morte. Queria dizer-lhe que quando li o livro eu já conhecia a dinastia dos reis etruscos, os últimos reis de Roma, e já imaginara histórias à sua volta, como imaginava histórias à volta dos seus olhos. Queria dizer-lhe que, entretanto, já tinha lido mais três livros dela. Queria dizer-lhe que se não fosse aquele primeiro livro, eu não teria sorrido quando ele pediu Campari. Muito provavelmente, nem saberia da sua existência. Queria muito dizer-lhe que o Campari era só uma gota de água no meio daquela praia simbólica cheia de personagens que falavam muito. Algo que me ficou pelo simples facto do cenário ser soberbo. Não estou certa, agora, se no livro se na minha imaginação. Queria ter dito que gostava de visitar Tarquínia. Com ele, de mãos dadas, mesmo que o amor pudesse ter o travo acidulado do Campari, que tinha acabado de provar nos seus lábios. Mas não disse nada do que queria dizer.

De qualquer forma, enquanto ele falava eu pensava em como gostava de lhe falar destas coisas. Das descobertas que fazemos quando lemos, do calor que sentimos, mesmo quando os dias não pedem Campari, mesmo quando dentro do livro, não estão 47 graus. Acho que eram 47.

Principalmente queria dizer-lhe que tinha descoberto os Cavalos de Tarquínia com Marguerite Duras. Pequenos cavalos esculpidos nos túmulos etruscos que se fizeram título de um livro que me chegou às mãos sem que eu o procurasse. E aproveitaria para lhe dizer que gostava de etruscos e da cultura etrusca. Da cerâmica, das esculturas, das jóias e, essencialmente, do alfabeto por descodificar. E do fulgor desta história, agora, tão longínqua.

terça-feira, setembro 6

Escrever, era a única coisa que povoava a minha vida...


«Escrever, era a única coisa que povoava a minha vida e que a encantava. Fi-lo. A escrita nunca mais me abandonou.


A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o escrito não se produz, ou se esfarela, exangue de procurar o que escrever.

É sempre necessária uma separação das pessoas que rodeiam aquele que escreve livros. É uma solidão. É a solidão do autor, da escrita. Para iniciar a coisa, interrogamo-nos acerca desse silêncio à nossa volta. Praticamente a cada passo que se deu numa casa e a todas as horas do dia, sob todas as luzes, quer estejam do lado de fora, quer sejam lâmpadas acendidas durante o dia. Essa solidão real do corpo torna-se outra, inviolável, a da escrita. Eu não falava disso a ninguém. Nessa época da minha primeira solidão, tinha já descoberto que dedicar-me à escrita era o que eu tinha de fazer.

Não encontramos a solidão, fazemo-la. A solidão faz-se só. Eu fi-la. Porque decidi que era aqui que deveria estar só, que estaria só para escrever livros. Passou-se assim. Estive só nesta casa. Fechei-me aqui – também tive medo, evidentemente. E depois amei-a. Esta casa tornou-se a da escrita. Os meus livros saem desta casa. Desta luz também, do parque. Desta luz reflectida no tanque. Precisei de vinte anos para escrever isto que acabo de dizer. Creio que a pessoa que escreve está sem ideia de livro, que tem as mãos vazias, a cabeça vazia, e que não conhece, desta aventura do livro, senão a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, longínqua, com as suas regras de ouro elementares: a ortografia, o sentido.»

Marguerite Duras, escrever; trad. Vanda Anastácio, Difel, Outubro 2001;

Texto desviado daqui

sexta-feira, agosto 19

India Song


«Como eu tenho uma espécie de desgosto em relação ao cinema que tem sido feito, enfim, da maior parte do cinema que tem sido feito, eu queria retomar o cinema do zero, numa gramática bem primitiva… bem simples, bem primária: recomeçar tudo». Marguerite Duras

sábado, outubro 23

A parte desconhecida da minha vida

A parte desconhecida da minha vida é a minha vida escrita. Morrerei sem conhecer essa parte desconhecida. Como foi escrito isto, porquê, como o escrevi, não sei, não sei como isto começou. Não se pode explicar. Donde vêm certos livros? A página está vazia e, de repente, já há trezentas páginas. Donde vem isto? É preciso deixar andar, quando se escreve, não devemos controlar-nos, é preciso deixar andar, porque não sabemos tudo de nós próprios. Não sabemos o que somos capazes de escrever.
Conheci grandes escritores que nunca conseguiram falar disso - conheci Maurice Blanchot e Georges Bataille intimamente, conheci Genet, creio que menos. Eles nunca sabiam, nunca falavam disso. Penso que é errado, aliás. Há trinta anos, era uma espécie de pudor aprendido, em parte, na escola sartriana, não se podia falar daquilo que se escrevia, não era decente - e penso que em Les Parleuses é a primeira vez que alguém fala disso, pelo menos uma das primeiras vezes. É bom falar disso e, ao mesmo tempo, é muito perigoso dar a ler textos antes de estarem terminados.
(...) Após o final de cada livro é o fim do mundo inteiro, é sempre assim, de cada vez. E depois tudo recomeça, como a vida.
Quando se escreve, não se pode falar em vez de escrever. O que se passa quando se escreve, nunca se pode dizer. Eu consigo ler uma passagem, mas depressa fico assustada.
Sou mais escritora do que vivente, que uma pessoa que vive. Naquilo que vivi, sou mais escritora do que alguém que vive. É assim que eu me vejo.

Marguerite Duras in Mundo Exterior