sábado, setembro 10

Eu estava farto de luz


[...]
Eu estava farto de luz. Todos os países que percorrera, todos os cenários que contemplara, inundava-os a luz do dia, e, à noite, a das estrelas.
Ah! que impressão enervante me causava essa luz eterna, essa luz enfandonha, sempre a mesma,sempre tirando o mistério às coisas...Assim parti para uma terra ignorada, perdida em um mundo extrareal, onde as cidades e as florestas existem perpétuamente mergulhadas na mais densa treva...Não há palavras que traduzam a beleza que experimentei nessa região singular. Porque eu via as trevas. A sua inteligência não concebe isto, decerto nem a de ninguém...
[...]
Narrar-lhe todas as minhas viagens seria impossível. No entanto quero-lhe falar ainda doutro país.
Que estranho país esse...Todo de uma cor que lhe não posso descrever porque não existe - duma cor que não era cor. E eis no que residia justamente a sua beleza suprema. A atmosfera deste mundo, não a constituía o ar nem nenhum outro gás - não era atmosfera, era música. Nesse país respirava-se música. Mas o que havia de mais bizarro era a humanidade que o povoava. Tinha alma e corpo como a gente da terra. Entanto o que era visível, o que era definido e real - era a alma. Os corpos eram invisíveis, desconhecidos e misteriosos, como invisíveis, misteriosos e desconhecidas são as nossas almas.

Mário de Sá-Carneiro, O Homem dos Sonhos in Livro de Verão, Alma Azul, 2003

imagem: capa sobre quadro de Edward Hopper

segunda-feira, novembro 23

Cinco Horas


Minha mesa no Café,

Quero-lhe tanto...A garrida

Toda de pedra brunida

Que linda e que fresca é!


Um sifão verde no meio

E, ao seu lado, a fosforeira

Diante do meu copo cheio

Uma bebida ligeira.


(Eu bani sempre os licores

Que acho pouco ornamentais:

Os xaropes têm cores

Mais vivas e mais brutais)


Sobre ela posso escrever

Os meus versos prateados,

Com estranheza dos criados

Que me olham sem perceber...


Sobre ela descanso os braços

Numa atitude alheada,

Buscando pelo ar os traços

Da minha vida passada.


Ou acendendo cigarros,

- Pois há um ano que fumo -

Imaginário presumo

Os meus enredos bizarros.


(E se acaso em minha frente

Uma linda mulher brilha,

O fumo da cigarrilha

Vai beijá-la, claramente...)


Um novo freguês que entra

É um novo actor no tablado,

Que o meu olhar fatigado

Nele outro enredo concentra.


E o carmim daquela boca

Que ao fundo descubro, triste,

Na minha ideia persiste

E nunca mais se desloca.


Cinge tais futilidades

A minha recordação,

E destes vislumbres são

As minhas maiores saudades...


(Que história de Oiro tão bela

Na minha vida abortou:

Eu fui herói de novela

Que autor nenhum empregou...)


Nos cafés espero a vida

Que nunca vem ter comigo:

- Não me faz nenhum castigo,

Que o tempo passa em corrida.


Passar tempo é o meu fito,

Ideal que só me resta:

P´ra mim não há melhor festa,

Nem mais nada acho bonito.


Cafés da minha preguiça,

Sois hoje - que galardão! -

Todo o meu campo de acção

E toda a minha cobiça.


Mário de Sá Carneiro


[poema dedicado ao meu absolutamente querido Alfredo Mendes que, amanhã, lança um livro sobre o Piolho, café que assinala este ano, um século]
imagem: Lesser Ury, Abend in Café Bauer, 1898