terça-feira, outubro 18

Escrever é procurar corresponder




Escrever é procurar corresponder

ainda que não se saiba a quê ou se esse quê existe

A nossa liberdade nasce de uma incerta radical

e a sua metamorfose é a invenção de um espaço

de correspondências que visam uma esfera inviolável



Nunca sabemos mas precisamos de desenhar a forma de um caminho

que vai até ao extremo do silêncio e reflui para o espaço

das nossas vidas sonâmbulas e incertas

e que nos abre o peito para uma respiração de estrelas vivas

embora continuemos a deambular no deserto



O silêncio do tempo diz-nos que é a única realidade

e que ela nos conduz à degradação e à morte

mas a ingénua energia de desejo impele-nos cada dia

a procurar a tranquila liberdade de um equilíbrio novo

no espaço da palavra dentro do incessante círculo do tempo

António Ramos Rosa



[o POETA fez ontem 87 anos! muitos e muitos parabéns!] 

terça-feira, maio 24

As palavras [são por vezes um clarão no dia calcinado]


Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo

As palavras identificam-se com o asfalto negro

o tropel das nuvens

a espessura azul das árvores acesas pelos faróis

o rumor verde

As palavras saem de um ferida exangue

de teclas de metal fresco

de caminhos e sombras

da vertigem de ser só um deserto

de armas de gume branco

Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos

e há palavras como giestas vivas

Matrizes primordiais matéria habitada

forma indizível num rectângulo de argila

quem alimenta este silêncio senão o gosto de

colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?

As palavras vêm de lugares fragmentários

de uma disseminação de iniciais

de magmas respirados

de odor de gérmen de olhos

As palavras podem formar uma escrita nativa

de corpos claros

Que são as palavras? Imprecisas armas

em praias concêntricas

torres de sílex e de cal

aves insólitas

As palavras são travessias brancas faces

giratórias

elas permitem a ascensão das formas

elevam-se estrato após estrato

ou voam em diagonal

até à cúpula diáfana

As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado


Que enfrentam as palavras? O espelho

da noite a sua impossível

elipse

Saem da noite despedaçadas feridas

e são signos do acaso pedras de sol e sal

e da sua língua nascem estrelas trituradas


António Ramos Rosa [de Gravitações,1984]

domingo, novembro 22

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos



dispersou-me os amigos


tenho o coração confundido e a rua é estreita


estreita em cada passo


as casas engolem-nos

sumimo-nos


estou num quarto só num quarto só


com os sonhos trocados


com toda a vida às avessas a arder num quarto só


Sou um funcionário apagado


um funcionário triste


a minha alma não acompanha a minha mão


Débito e Crédito Débito e Crédito


a minha alma não dança com os números


tento escondê-la envergonhado


o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal


em frente


e debitou-me na minha conta de empregado


Sou um funcionário cansado de um dia exemplar


Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?


Porque não me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?


Soletro velhas palavras generosas


Flor rapariga amigo menino


irmão beijo namorada


mãe estrela música.


São as palavras cruzadas do meu sonho


palavras soterradas na prisão da minha vida


isso todas as noites do mundo uma noite só comprida


num quarto só


António Ramos Rosa, de O Grito Claro, 1958

sexta-feira, maio 15

SIM

Sim, quero dizer sim ao inacabado


que é o princípio de tudo

e o que não é ainda,

sim ao vazio coração que ignora

e que no silêncio preserva o sim do início,

sim a algumas palavras que são nuvens

brancas e deslizam amplas

sobre um mundo pacífico,

sim aos instrumentos simples

da cozinha,

sim à liberdade do fogo

que adensa o vigor da consciência,

sim à transparência que não exalta

mas decanta o vinho da pesença,

sim à paixão que é um ajuste ao cimo

de uma profunda arquitectura íntima,

sim à pupila já madura

que se inebria das sombras das figuras,

sim à solidão quando ela é branca

e desenha a matéria cristalina,

sim às folhas que oscilam e brilham

ao subtil sopro de uma brisa,

sim ao espaço da casa, à sua música

entre o sono e a lucidez, que apazigua,

sim aos exercícios pacientes

em que a claridade pousa no vagar que a pensa,

sim à ternura no centro da clareira

tremendo como uma lâmpada sem sombra,

sim a ti, tempestade que iluminas

um país de ausência,

sim a ti, quase monótona, quase nula

mas que és como o vento insubornável,

sim a ti, que és nada e atravessas tudo

e és o sangue secreto do poema.

António Ramos Rosa
[de No Calcanhar do Vento, 1987] in Os Quatro Elementos, pag. 39, ASA, 2004

imagem: pintura de Magritte