sexta-feira, março 25

Os observadores estrangeiros...


Os observadores estrangeiros maravilham-se de que Portugal resista à crise política e económica com tal poder de adaptação. Há nos Portugueses uma sinceridade para com o imediato que desconcerta o panorama que transcende o imediato. O infinito é o que eu situo - dizem. E assim vivem. Protegidos talvez por essa condição de afecto pelas coisas, pelos seus próprios delitos, que não consideram dramáticos, só ao jeito das necessidades. De resto — quem se apresenta a salvar-nos que não esteja suspeitamente indignado? Os que muito se formalizam muito escondem; os que acusam demasiado privam-se de ser leais consigo próprios. O país não precisa de quem diga o que está errado; precisa de quem saiba o que está certo.


Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'

Desviado daqui

sexta-feira, outubro 15

Agustina Bessa Luís, hoje

Queria tanto estar lá, hoje, data de aniversário de Agustina Bessa Luís.
«Cada voz está só e é única e é contra o coração dos outros, vertiginosamente, que ela ressoa». Esta frase de Agustina acompanha-me todos os dias. Ilumina as tragédias dos telejornais como a tristeza quotidiana da mulher que confessa à amiga a sua decepção, numa mesa de café. As mulheres desiludem-se, ao contrário dos homens, que são ensinados a viver sem ilusões. Às mulheres, ensina-se-lhes a viver sem tudo menos isso. Por isso as mulheres são especialistas em sobrevivência: é-lhes muito difícil perder a esperança, uma nesga de esperança que seja. Há dias, um amigo dizia-me que a razão pela qual os homens mandam no mundo é o cuidado que têm em evitar conflitos directos. À primeira vista, isto parece uma qualidade – mas significa na realidade um exercício constante de desvio face às pequenas, médias e grandes iniquidades.»
este texto da Inês Pedrosa
CONTINUA no blog da Patrícia Reis

sábado, setembro 4

Quinta das Lágrimas


Fui há muitos anos à Quinta das Lágrimas, onde se diz que Inês foi morta. Lembro-me que se transpunha o rio atravessando uma ponte de madeira cujas tábuas gemiam e ba­loiçavam. Parecia uma ponte militar, para assédio à cidade.

A Quinta das Lágrimas esteve para ser comprada pelo meu pai quando ele veio do Brasil e se deixava sugestionar pelas lendas históricas e coisas famigeradas de glória antiga. Havia uma enorme árvore da cânfora nos arredores da casa, que era como uma estufa, com muitos vidros e caixilhos descascados. Numa caleira de pedra corria a água. sobre um líquen vermelho. Dizia-se que era «o sangue de Inês». Como disse, a moradia era decepcionante, um pouco ao estilo dos chalés de Sintra em que veraneavam os banqueiros do século XIX e os ricos-homens dos cafezais de S. Tomé. Esta­vam na moda os jardins de Inverno, e nesse tipo de casas havia pavilhões envidraçados onde se tomava chá e bebia água de sifão. Mas não posso garantir que na Quinta das Lágrimas fosse assim.

Era numa tarde muito quente, em Maio. O calor de Maio, em Coimbra, traz no coração o perfume da tília em flor; desde o alto do Jardim da Sereia ele abate-se até ao fundo da cidade como um lenço abafante e suave. É um calor e um perfume que deprimem. Acompanham os estudantes quando eles revêem a matéria, fumando com gesto irritado e deixando o olhar parar nas varandas da frente onde outros estudantes mourejam nas páginas das sebentas.

Mas, voltando à Quinta, que está num vale sem horizontes, que seriam dantes os fecundos campos de regadio, com manantes a visitar-lhe os muros para roubar capôes e melancias: estranhei-a, de tão deserta. Não havia um só visitante, ou um morador; e não vi também guardião. Só um cãozito sujo, de pêlo em que a lama secara, me lançava de longe alguns ladridos curtos, sem cólera, por simples obrigação.

A casa não tinha cortinas nem vestígios de ser habitada. Havia, em volta, alguns canteiros onde crescera a beldroega e umas açucenas tão altas que podiam chamar-se o bordão de S. José. Na parede, uma mancha de água que se infiltrara pelo telhado parecia a sombra de uma mulher; uma mulher alta e corpulenta, que risse, os ombros deitados para trás. Ouvi, ou pareceu-me, um arrastar de passas, mas durou pouco; tudo ficou silencioso outra vez. Porém, quando eu já me afastava vi, sentada numa velha cadeira de verga, uma senhora ainda nova, com uns óculos na mão direita e que olhava para mim com uma frieza condescendente. Se era a dona da casa era uma excêntrica, porque estava vestida com uma saia cor de ferrugem, tendo por cima um vestido verde, aberto, e um cinto dourado. Os cabelos usava-os soltos e eram de um belo loiro carregado com reflexos mais claros sobre as orelhas. O rosto era rosado, mas notava-se que usava carmim, muito fino e brilhante. Estendeu as pernas com um movimento preguiçoso; estavam nuas e eram tão brancas como o ventre das trutas. Até certo ponto parecia muito uma lavradeira abastada, dessas do Alto-Minho que se descalçam ao fim das tardes de Verão para ir regar, [...]

AGUSTINA BESSA LUIS, “Adivinhas de Pedro e Inês”, GUIMARÃES & C.a, EDITORES, 1983, pp. 7, 8

terça-feira, março 10

Livros que se descobrem...

Ela enviou-me um bom dia, por e-mail! Que ele, lho tinha enviado a ela. E foi a partilha em cadeia. Eu desconhecia que Agustina Bessa-Luís tinha escrito este livro que começa assim...
«A infância vive a realidade da única maneira honesta, que é tomando-a como uma fantasia. Nao tentem explicar o mundo a uma criança que ela saberá despistar as provas oferecidas. Não lhe interessam as provas, mas sim os mistérios (...) Dentes de Rato prefere a solidão das suas descobertas à explicação que lhe oferecem.
Ela é poesia livre, como só os anjos rebeldes sabem fazer»
Lourença, a personagem principal, capta a atenção de miúdos e graúdos. Eu já estou cativada...
[Como direi? obrigaduardos? seguramente, obrigada querida E.]