
Por ordem de V. Exa. Foi o meu livro HISTÓRIAS DE AMOR proibido de circular. Por ordem, ao que creio, do Ministério do Interior e em complemento da decisão de V. Exa.sobre a citação da Obra, foi encarregada da apreensão da PIDE. A intervenção inesperada desta Polícia Especial num assunto de índole exclusivamente literária é de todo o ponto injustificada e veio dar à questão um significado que lhe é totalmente alheio, podendo, em síntese, definir-se como atitude abusiva de direito policial.
Em verdade, não vejo eu – nem a Censura, ao que parece – que em HISTÓRIAS DE AMOR se atente por qualquer forma contra a segurança do Estado. Tão-pouco me parece motivo de polícia a atitude de um escritor português que se debruça sobre aspectos reais e concretos da realidade portuguesa, condenando, por exemplo, o adultério (Week-end), a vadiagem de pior extracção (Ritual dos Pequenos Vampiros), o amor clandestino (Rapariga dos Fósforos), etc. – aspectos da realidade quotidiana que qualquer moral consequente ataca. Muito pelo contrário,entendo que tal atitude é meritória e vem em abono dos mais elementares princípios morais. Nunca, seja em que caso for, ele seria objecto de polícia e muito menos de Polícia Especial.
Não é meu propósito fixar-me aqui em considerandos que com justiça viessem sublinhar a ilógica intromissão da PIDE no caso. Permito-me apenas trazer ao conhecimento de V. Exa. Este meu necessário protesto, certo de que, como Director de um organismo destinado expressamente a tratar de direito de assuntos literários, não deixará de lhe dar a merecida atenção.Isto porque cuido que os Serviços de Censura, sob a Direcção de V. Exa., não são de modo algum instrumento activo de política sectária mas um «meio de harmonizar trabalho dos escritores com a lei e os superiores interesses da Nação».
a) De conteúdo social – V. Exa. Decerto avalia a que ponto tal classificação é pessoal e arbitrária e por mim, Senhor Director, permitindo-me observar aqui que nem o romântico Garrett escapou na boca de muitos críticos a esse rótulo.
b) Demasiado realista em certas passagens – Pelo exemplar censurado que me foi cedido para consulta e que justamente restituo, pude verificar que a quase totalidade dos «cortes» é, no mais exigente e puritano dos conceitos, infundada pois trata-se de frases comuns, e comummente aceites sem intuito pornográfico ou sentido aliciante de baixa literatura. Tomo a liberdade de submeter a V. Exa. Estes exemplos que propositadamente não escolhi constituem os «cortes» totais de 3 páginas:
«de novo tombavam para o lado e ficavam assim, as bocas entreabertas – misturado com a saliva dos beijos – É indecente, estou a molhar-te com suor» (pag.33); «lá estava ela ainda no leito com uma perna abandonada entre os lençóis – o sol e a perna loura entre os lençóis ainda quentes – o moço saltou da cama e veio até à janela enrolado na coberta – e novamente os apertou nos dentes» (pag.40); «nu» (pag.153).
No que respeita a este último aspecto, afigura-se-me de único interesse saber em que medida estas palavras funcionam como elementos eróticos ou deturpadores da realidade e não como em si mesmas podem ser tomadas. As palavras são sempre vazias e só tomam corpo e sabor autênticos quando informadas de intenção.
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É evidentemente certo que Maiakowski e Eluard são poetas e cidadãos comunistas, mas uma leitura mais circunstanciada do texto poderá demonstrar que os cito de mistura com Gide, Pessoa e Debussy não foi por pretender camuflá-los (tão conhecidos eles são! ) Mas para sugerir que naquele momento do conto não interessava ao protagonista qualquer evasão literária ou artística fossem quais fossem as suas preferências [...]
Mais razoável, perante as justificações que acabo de apresentar, e mais consentâneo com o desejo do meu editor, seria o de se considerar o livro em bloco, não exigindo emendas a cada um dos «cortes» de per si, substituindo-se um caderno de 32 páginas em todos os exemplares apreendidos para que desta forma se aproveitasse a quase totalidade dos exemplares com as restantes páginas impressas.
Convicto de que este alvitre e as razões aqui alegadas merecerão a consideração mais justa e oportuna, subscrevo-me...
Escrita após a proibição e retirada do mercado de Histórias de Amor, classificado como «Imoral. Contos de misérias sociais e em que o aspecto sexual se revela indecorosamente. De proibir.»
Texto citado a partir de Cândido de Azevedo, in A censura de Salazar e Caetano , Editorial Caminho 1999