segunda-feira, novembro 5
Rosto da muralha
um homem com o coração nas mãos
correu pela borda da noite
para oficiar as trevas
havia uma guerra anunciada
e três guerras por resolver
em toda a parte
tinham mudado os sinais
um homem abraçado à sua própria sombra
estendia o coração
para resolver o caminho
era difícil perceber
por que começavam os dias a meio das noites
era difícil perceber
a noite única que testava
no lugar do coração antigo
um homem vai bêbado de seu próprio sangue
e mal ouve a voz de anunciar princípios
perdeu a capacidade do gesto
não consegue deixar o rasto
de sua mão de sangue na face da muralha
as mãos já não são mãos
mas um tecido de veias
que pingam no útero da floresta
um homem arrancou o seu próprio coração
p'ra fundar a noite
encontrar o caminho
descobrir a voz
construir a fala
deixar um gesto de prata
no rosto da muralha
Ana Paula Tavares
Escrito/editado por Marta 1 Terráqueos
domingo, novembro 4
quinta-feira, novembro 1
O tempo passa ? Não passa
O tempo passa ? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.
O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.
Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.
O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.
São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.
E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
quarta-feira, outubro 31
domingo, outubro 21
A meu favor tenho o teu olhar
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Manuel António Pina, in Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância
Escrito/editado por Marta 4 Terráqueos
porque sim
O mais importante na vida
É ser-se criador – criar beleza.
Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.
Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir a voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.
Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.
António Botto
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
segunda-feira, outubro 15
A gratidão é o que há de menos efémero na nossa vida
(...) Um livro que se escreve é sempre uma confissão espontânea; por depravada que pareça uma narrativa, o livro não corresponde a um acto depravado, porque é um acto de liberdade. O que...leva a escrever é a convicção de realizar algo de bom mesmo quando os méritos são poucos ou o orgulho é soberano. O escritor espera sempre que a inspiração supere a sua impotência e o faça merecedor da graça divina da arte e da vontade para a exercer.
No meu caso, aqui solicitado, todos os meus livros são um exercício de confissão espontânea. Os defeitos que se notam neles, defeitos que transbordam da espontaneidade (falta de espírito académico, lirismo fútil e fluência de palavras que despistam os leitores dos elementos inconscientes), são uma prova de insubmissão. A insubmissão pode significar amor, assim como a submissão. A insubmissão, em certas vidas criativas, comporta um sadismo pueril que nunca é completamente extirpado das sociedades, mesmo as mais civilizadas. A confissão espontânea que é o livro de ficção, em geral beneficia desse sadismo pueril. Exerce uma apaixonada agressão sobre o mundo porque se sente motivo de amor. A confissão seduz pelo facto de deixar à margem da submissão um pequeno toque de insubmissão.
Quero dizer que, ao despertar desta consagração que me fazem, eu sou insubmissa. A gratidão é uma experiência subjectiva, como a fé. É mesmo um acto de fé que a substância dum ser humano nunca pode mudar. Nela não há incerteza; é feita de pertinência, faz parte da interpretação dos meus livros; faz parte do nosso juízo sobre as obras humanas calçadas com a botinha de bronze, emergência da imortalidade mas que o não é. A gratidão é o que há de menos efémero na nossa vida. Por ela, somos provavelmente menos livres, mas também menos sós. Isto é bom.
Agustina Bessa-Luís
in Contemplação Carinhosa da Angústia, pag.195, Guimarães Editores
[...no dia em que a imensa Agustina faz 90 anos. parabéns!]
Escrito/editado por Marta 7 Terráqueos
quinta-feira, outubro 11
"As Ondas", de Virginia Woolf
Por Alexandra Lucas Coelho in Mil Folhas, Público
Poucos romances, em todo o século XX, nos mostraram tão intensamente como a literatura podia ser ainda uma coisa nova e viva
Podemos começar pelo que este livro não é, para arrepiar caminho. E para isso, tomemos de empréstimo o que dele disse Jorge Luis Borges: "Não há argumento, não há conversa, não há acção." Era um cumprimento. E Virginia Woolf estaria de acordo. Assim, solto da ganga romanesca e dentro da cabeça que pulsa, o quis ela, desde o princípio.
Em Novembro de 1928 - tinha ela 44 anos, e era já a autora aclamada de "Orlando, "Mrs. Dalloway" ou "Rumo ao Farol", três dos seus mais notáveis romances -, escreveu Virginia Woolf no seu diário: "Quero eliminar todo o desperdício, todas as coisas mortas, o supérfluo: dar o momento inteiro, com tudo o que faz parte dele. Digamos que o momento é um misto de pensamento, de sensação, a voz do mar... Esse medonho assunto da narrativa realista, avançar do almoço para o jantar, é falso, irreal, meramente convencional. Porquê admitir algo na literatura que não seja poesia - até à saturação, mesmo? É isso que quero fazer em 'As Mariposas'"
"As Mariposas" foi, entre 1928 e 1929, o título provisório desse projecto, dessa "tentativa completamente nova" no interior da literatura. Depois, quando Virginia Woolf se lembrou "de repente" (a expressão é dela) que as mariposas só voam de noite, mudou o título para "As Ondas". E no Outono de 1929 começou a escrever aquela que viria a ser considerada por muitos (não Borges, que preferia "Orlando") a sua obra-prima.
Bernard, Neville, Louis, Jinny, Susan, Rhoda. Seis personagens, seis vozes que falam, não umas com as outras, não para fora, mas dentro de si - há ainda uma sétima personagem, Percival, que a todos fascina, mas que nunca escutaremos.
Cada fala destas seis personagens (seis faces de um rosto único?) é a torrente caótica e fabulosa de imagens e palavras que se forma dentro da cabeça em minutos, em segundos. São eles - as suas vozes, sempre em discurso directo - que nos levam através do seu percurso, da infância à maturidade, em nove etapas. O livro percorre, nessas etapas, o tempo da vida humana.
Mas há um outro tempo, paralelo, sem personagens, sem fala, antes de cada etapa: uma descrição da viagem que o sol faz ao longo de um dia, e do efeito desse movimento numa paisagem com mar. As ondas quebram-se assim, sincopadamente, tal como bate o coração.
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
O tigre na rua
Pensei muito: como é que apareceu um tigre na rua?
pensei pensei,
pensei pensei,
pensei pensei,
pensei pensei,
soprou o vento neste momento,
e eu esqueci o pensamento.
Por isso continuo sem saber como é que na rua terá aparecido um tigre.
Daniil Harms in O tigre na rua e outros poemas; tradução - Nina e Filipe Guerra
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos
quarta-feira, outubro 10
A personagem veio de lá de trás
A personagem veio de lá de trás
pelo meio da floresta de cadeiras
e foi sentar-se na primeira das filas
ao lado da outra personagem.
As luzes apagaram-se de repente
e de repente as personagens acederam à luz
e saltaram incandescentes para o palco.
Para um palco que ninguém viu então,
para um palco que nunca ninguém viu.
Pedro Tamen
Escrito/editado por Marta 0 Terráqueos