quarta-feira, maio 13

Deve ter 237 anos [III]

[...] Depois de ter estudado bem todas as gerações de palavras que o habitam, o adivinhador de passados, disse-me que tinha encontrado a solução. Desabraçar. Essa era a palavra para que jamais voltasse a dar um abraço inventado, numa pessoa inventada. E eu disse-lhe que isso era impossível, porque nunca tinha inventado um desabraço. E que me parecia absurdo. E que nem sequer nunca tinha visto ninguém desabraçar alguém. E ele riu-se. E autorizou-me a procurar a palavra para que acreditasse. E garantiu-me que só um beijo inventado não tinha solução. Porque a palavra desbeijar não existe. E perguntou-me se algum dia eu tinha dado um beijo inventado numa pessoa inventada. E disse-lhe que, antes de mais, ia procurar a palavra desabraçar. Desabonar; desabono; desabordar; desaborrecer; desabotoadura...[cont.]

sexta-feira, abril 10

Deve ter 237 anos [II]


[cont.] E, mesmo incrédula, anotei: o coração não é um lugar seguro. E o adivinhador de passados perguntou-me como o tinha encontrado. E eu disse-lhe que tinha sido ele o primeiro encontrar-me. E ele disse que acreditava. E pediu desculpa por não o saber. Pois só sabia adivinhar o passado das outras pessoas. Não o dele. E, então, pedi-lhe ajuda. Expliquei-lhe que tinha inventado um abraço e andava preocupada. Porque apesar de ser passado, continuava a dá-lo todos os dias. A alguém que também tinha inventado. Ele sorriu. E eu corei. E perguntei-lhe se podia ajudar-me a deixar de dar esse abraço. E ele disse que era muito difícil. E pedi-lhe que procurasse nas gerações inteiras de palavras que o habitam, uma solução.
E ele anotou: abraço inventado. Em pessoa inventada. Urgente. [cont.]
Imagens: Sanithna Phansavanh

segunda-feira, março 2

Deve ter 237 anos [I]

Não muito longe daqui, vive um adivinhador de passados. Deve ter 237 anos. O problema é que lê livros como quem lê estrelas. E ele já lê estrelas há mais de dois séculos! E isso é trágico porque conhece gerações inteiras de palavras. E, ainda por cima, escreve-as! E isso, tira-me o sono. Podia esquecer-se. Mas não. Está sempre a recordar-se [-me]. E junta as palavras de forma a falarem comigo. E dizem-me tanto! Por vezes, fico toda silêncio. E vou embora. Da última vez que o encontrei, não muito longe daqui, disse-me:
o coração não é um lugar seguro.
Não foi bem assim. Foi com gerações inteiras de palavras. Que o habitam... [cont.]
Imagens: Sanithna Phansavanh