domingo, setembro 12

Um homem ético


No centro de todos os olhares que confluem sobre Borges está a figura do notável e ponderado escritor. No entanto – e sem querer entrar com isto nesse requentado jogo do “duplo”, sobre o qual tanto se tem escrito – há outro Borges. Há um Borges que durante mais de oitenta e seis anos percorreu os corredores da vida social sem que ninguém tenha podido injuriar as suas atitudes.
Borges viveu a sua longa vida no quadro de uma constante austeridade. Habitou sempre em casas de classe média e, nos últimos quarenta anos - cerca de metade da sua vida – conviveu com a mãe no modesto apartamento de três divisões da Rua Maipú 994. Os Borges não eram uma família rica, embora nunca tivesses passado necessidades. Não eram latifundiários nem fazendeiros e não viviam de grandes rendimentos. Georgie começou a trabalhar de modo regular depois da sua segunda viagem à Europa, em 1927, quando foi admitido no diário La Prensa, e entregou-se depois, para ganhar a vida, a uma grande quantidade de tarefas, sempre ligadas à actividade literária. Foi secretário de redacção das revistas Obra e Anales de Buenos Aires, entre outras, trabalhou na Biblioteca Municipal Miguel Cané durante mais de sete anos, deu lições e conferências, foi professor na Universidade e escreveu uma infinidade de prólogos e textos com fins comerciais. São exemplos disso o trabalho que redigiu com Bioy Casares para a promoção do leite coalhado de La Martona ou o folheto que preparou para a companhia Varig a fim de salientar as virtudes turísticas do seu país.
Em matéria de alimentação, era sumamente austero: preferia um bom prato de arroz com queijo e prescindia, em geral, de bebidas alcoólicas. Quando bebia, nunca ia além de um copo de vinho. Gostava imenso de queijos. Quanto ao vestuário, era sóbrio e clássico; costumava usar fato e gravata e evitava as corres berrantes. Não teve automóvel e servia-se dos transportes públicos: o carro eléctrico, o metropolitano ou o autocarro. Também viajava, com frequência, de taxi. Durante os dezassete anos em que foi director da Biblioteca Nacional – nessa época, na Rua México – ia a pé para o local de trabalho, quer à ida, quer à volta, e nas viagens ao interir do país optava pelo comboio.
Nos seus últimos anos, quando era solicitado para uma infinidade de actividades e os seus rendimentos eram já importantes, confiou a gestão do seu dinheiro a terceiras pessoas e nunca soube, ao certo,quanto possuía. Em todos os momentos os seus interesses passaram sempre por questões literárias.
Alejandro Vaccaro in Fotobiografia de Jorge Luís Borges, pag. 170, Teorema

quinta-feira, junho 11

Nem todas as loucas são piedosas

Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana
D. Maria I, primeira rainha reinante de Portugal
Chamaram-lhe a piedosa e a louca. Nasceu em Dezembro de 1734 e morreu com 81 anos.
«Os protagonistas da História são, invariavelmente, traços verticais sobressaindo do grande risco irregular da época em que viveram. Maria I não é excepção. Destaca-se pelo contraste que assina perante o seu próprio pai e antecessor, José, em especial por ser, enquanto governante, muito mais identificável. José viveu na sombra protectora e indutora de impunidade de um ministro, Pombal, que muitos relatos da História confundem com a magna omnipotência, sendo este o escoadouro das régias culpas.
Nesta visão, Pombal era o facínora e José era o rei nubloso que empunhava as cordas que manipulavam o títere.
Maria esteve sob o foco dos acontecimentos, enfrentou e resistiu aos ventos das mudanças, teve como inimigos a Revolução Francesa, Napoleão e os seus próprios súbditos, com a memória em sangue, esventrados pela crueldade do passado mais próximo.
Maria foi a primeira mulher a ocupar o trono português como protagonista e governante.
Muitos procuram vê-la como a figura frágil e psicótica que acabará por desembocar no terrível beco da loucura.
Esta loucura, todavia, assenta em antecedentes próprios e parece a vários títulos providencial.
Mulher sensível, Maria resistiu a muitos abalos. O que despoletaria a sua loucura? E era de facto loucura a sua enfermidade? A loucura da rainha D. Maria foi providencial? Quais são os símbolos do poder que asseguram a um estado soberano conquistar outro estado soberano e submetê-lo?
Tomar a sua capital, depois de invadir-lhe o território, e obrigar à capitulação da sua figura mais importante? Com a deslocação da capital para o Rio de Janeiro, Lisboa não ficava à mercê dos conquistadores como cidade mais importante do reino. E com uma rainha de cérebro ausente, uma aura de intangibilidade pairava sobre a coroa e a sua mais importante figura. Teria sido por isso que Maria se manteve rainha durante tantos anos e João apenas regente? Essa intangibilidade teria alguma aura de mentira? João VI instalou a sua sede de governo no Brasil na vizinhança e com passagem directa para o convento das Carmelitas - a nova residência da rainha louca. Uma louca que andava com as suas aias - Maria vai com as outras, a primeira rainha de Portugal é uma pobre louca, dizia-se - pelas ruas cariocas, sem grande aparato.
[...]
Maria viveu confortavelmente no Brasil, apesar das grandes restrições iniciais, dos limites da doença, das diferenças climatéricas - o Rio de Janeiro tinha temperaturas como as de hoje, altas em média,uma humidade tremenda, mas sobretudo, há duzentos anos, era muito mais perigoso para a saúde: epidemias, lixos,falta de higiene... - e de todas as incertezas.
Foram nove anos: a rainha morreu no dia 20 de Março, no Rio de Janeiro. Anos mais tarde, o seu corpo faria a viagem de volta, para ficar sozinho na Basílica da Estrela, à espera de uma memória como esta, que a revisite e perpetue...»
Alexandre Honrado in D. Maria I, A biografia da Rainha que teve a coragem de despedir o Marquês de Pombal, Editora Guerra e Paz, 2007
imagem daqui