sexta-feira, março 2

De certo modo, os franceses estilizaram o amor...



De certo modo, os franceses estilizaram o amor, criaram um determinado estilo, um determinado formato para o amor. E depois acreditaram nisso, sentiram-se obrigados a vivê-lo de uma certa maneira, quando poderiam tê-lo vivido de forma completamente diferente, se não tivessem atrás de si toda aquela literatura. (...) ali toda a gente está exposta a essa noção literária do amor, da emoção, da sensualidade, do ciúme (...). Há demasiadas convenções em tudo isto.

É preciso saber desde logo o que se entende por amor. Se se entende por amor a adoração de um ser, a persuasão de que dois seres foram feitos um para o outro, de que se correspondem mutuamente por qualidades de certo modo únicas, nesse caso a miragem é tão grande que qualquer pessoa que reflicta um pouco diz forçosamente: "Não, estou longe de ter essas qualidades excepcionais e o outro provavelmente também não as tem; tomemos consciência do que é; amemos o que é.

Marguerite Yourcenar in  De olhos abertos, pag. 71, Relógio de Água Editores, Lisboa, 2011
Tradução de Renata Correia Botelho

imagem: Miguel Carvalho

domingo, dezembro 11

Estou perto do nó misterioso das coisas


Não cairei. Atingi o centro. Escuto o bater de não se sabe que relógio divino, através do delgado tapume carnal da vida cheia de sangue, de estremecimentos e de sopros. Estou perto do nó misterioso das coisas como à noite estamos por vezes perto de um coração.

Marguerite Yourcenar, in Fogos, pag.81, Difel, 1995

imagem: Tiago Taron

sábado, outubro 29

... a vida fez-me compreender os livros.




Como toda a gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas (…). A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.



Marguerite Yourcenar in Memórias de Adriano, pag. 23-24, Editora Ulisseia, 1997

imagem: Di Li Feng