sexta-feira, maio 22

Na paragem do autocarro


Esperamos pelo autocarro. Na longa avenida que desagua num mar verde, azul, cinza. Da cor dos dias que vestimos. Ou despimos. Não importa para o caso. Falamos durante horas. Horas de dias inteiros. Ora de pé, ora sentados no passeio. Falamos de nós, muito de nós, tudo de nós. Do mundo, de vez em quando. Quando ele era o apêndice do nosso universo de afectos. De crenças. De olhares. De dar-de-mãos. Criamos cumplicidades do tamanho de grãos de arroz. De arrozais infinitos. Alagados e brancos. Transparentes e fundos. Nós quisemo-nos, como agora, sem querer, não nos queremos. Iguais e dissemelhantes como aves. Como asas de borboleta. Uma aguarela. Outra carvão. Tanta fragilidade. Dentro dos teus olhos, principalmente nas palmas das tuas mãos e, de vez em quando, dentro do teu sorriso, vive um dom inexplorado. Ao teu lado, eu sou um penedo. Sem jeito para coisa nenhuma, a não ser para sentir. Esperamos pelo autocarro. Felizes e com tempo. Até darmos conta que a paragem do autocarro está desactivada. Como nós. Agora. Um sorriso a menos, um olhar a menos, uma confissão a menos. Qualquer subtracção ao nosso universo, é uma violência demasiado silenciosa. Insuportável ao ouvido tísico do nosso coração.
imagem: Ethno Scap

segunda-feira, maio 18

Entre o esquecimento e o perdão

Aos 40 anos uma mulher descobre que a sua vida é uma mentira. O pai não é seu pai, os seus irmãos, não são seus irmãos e o avô que visitou, durante tantos anos, no cemitério de Coimbra, cidade onde nascera, vive na Holanda.
Poderia não ser importante descobrir a verdade, uma vez que a sua família de coração e de fé, eram todas as outras Carmelitas Descalças do convento onde vivia. E Deus. Vivia para Ele e com Ele. Em silêncio e oração. Numa fé só de eleitos.
Abandonou a sua vida de recolhimento. Colocou o hábito dentro de uma caixa. Despediu-se de toda a gente no mosteiro que sempre a consolou e resguardou do mundo.
Voltou a chamar-se Helena. Leni, como lhe chamavam os irmãos e a mãe. E partiu em busca de si, da sua história. Com fé. Talvez na força de um pedido da sua mãe, expresso numa carta deixada, antes de morrer. Tinha ela 14 anos.
Já na Holanda, na praça de Dam Square, ainda desajeitada naqueles trajes de mulher comum, comprou um chapéu que lhe tapasse a cabeça.
Ainda bem que tudo lhe estava a acontecer no Inverno. Assim vestida e calçada, o desconforto não era total. Não saberia como lidar com o sol na pele.
Helena caminha em direcção ao hotel. Sente medo. Medo e desejo.
Medo de saber quem é; desejo de saber quem será.
Com quem se parceria? De quem herdou os olhos esverdeados, o rosto angular, o cabelo claro e sedoso, o corpo esguio, as mãos de pianista?
E, principalmente, de quem herdou aquela vontade de ajudar o mundo em silêncio e recolhimento, só com o poder da oração?
E de onde lhe vinha aquele fascínio pelo céu, principalmente quando a noite cai e o telescópio vigia as estrelas. A astronomia, que estudou, ainda hoje a fascina e comove. Passou a infância a olhar para o céu e a adolescência a ponderar se Deus mora lá. Acredita que sim, que mora.
Tantas certezas sobre as estrelas e sobre Deus e, agora, enquanto caminha, nenhuma sobre si. Helena é o dogma da sua existência. Disseram-lhe que era filha de Mário Vila Franca e Antónia Vila Franca e ela acreditou. Disseram-lhe que era a irmã mais velha, de dois irmãos, e ela acreditou. Nunca colocou nada em causa. Nada.
Até porque estava escrito. E as coisas escritas parecem indesmentíveis.
E agora, na mala que desliza atrás de si, tem a carta que o pai lhe escreveu para o convento, poucos dias antes de morrer. E como pesam as cartas que chegam dias antes de quem as escreveu morrer.
Que sempre a amou como filha mas que não era sua filha. Que procurasse o avô materno, na Holanda. Que o paterno, é verdade, tinha morrido, mas não tinha campa, em Coimbra.
Que guardasse os documentos que lhe envia com a carta. São originais. E que perdoasse ao seu verdadeiro pai e lhe perdoasse a ele, também, por nunca ter tido a coragem de lhe contar a verdade. Mas, fosse qual fosse a verdade que encontrasse, morria certo do seu perdão. Afinal, uma freira, tem por dever perdoar. E sabe fazê-lo melhor do que qualquer outra pessoa.

Helena caminha em direcção ao hotel, tão absorta nos seus pensamentos, que não repara num velho vigoroso que a segue desde que deixou o aeroporto em direcção ao centro da cidade. O velho que a viu comprar o chapéu sem o experimentar, segue-lhe os passos.
Os passos de uma mulher comum, para a qual a vida deixou de fazer sentido no recolhimento e na oração. Uma mulher entre a memória e a mentira. Entre o esquecimento e o perdão.
Imagem daqui