sexta-feira, maio 22

Na paragem do autocarro


Esperamos pelo autocarro. Na longa avenida que desagua num mar verde, azul, cinza. Da cor dos dias que vestimos. Ou despimos. Não importa para o caso. Falamos durante horas. Horas de dias inteiros. Ora de pé, ora sentados no passeio. Falamos de nós, muito de nós, tudo de nós. Do mundo, de vez em quando. Quando ele era o apêndice do nosso universo de afectos. De crenças. De olhares. De dar-de-mãos. Criamos cumplicidades do tamanho de grãos de arroz. De arrozais infinitos. Alagados e brancos. Transparentes e fundos. Nós quisemo-nos, como agora, sem querer, não nos queremos. Iguais e dissemelhantes como aves. Como asas de borboleta. Uma aguarela. Outra carvão. Tanta fragilidade. Dentro dos teus olhos, principalmente nas palmas das tuas mãos e, de vez em quando, dentro do teu sorriso, vive um dom inexplorado. Ao teu lado, eu sou um penedo. Sem jeito para coisa nenhuma, a não ser para sentir. Esperamos pelo autocarro. Felizes e com tempo. Até darmos conta que a paragem do autocarro está desactivada. Como nós. Agora. Um sorriso a menos, um olhar a menos, uma confissão a menos. Qualquer subtracção ao nosso universo, é uma violência demasiado silenciosa. Insuportável ao ouvido tísico do nosso coração.
imagem: Ethno Scap