segunda-feira, agosto 24

felicidade versus tristeza

Sábado, dia 22 - garanto-vos - foi um dia muito feliz. Jamais o esquecerei. Feliz. Absolutamente feliz. Sem reservas. Fomos jantar. Um grupo de amigos. Entre esses amigos, estava uma amiga com quem, a cada encontro, ganho uma afinidade. Afinidades invulgares, diga-se. Um dia explico.
Conversamos, rimos, recordamos. Falamos de férias - sim, que ainda não as esgotamos - fizemos planos para amanhã. Para depois de amanhã. Para Setembro.
Hoje, dia 23, a mãe dessa amiga já não está entre nós. Assim, sem mais. Sem que nada o fizesse prever. Exactamente como na vida!
E não me larga o pensamento aquela frase do Chaplin: "a felicidade completa é algo que está muito próximo da tristeza".
imagem: cirandar

sábado, março 28

O culto dos detalhes I


Feliz. Sim feliz. Assumia esse estado de alma sem rebuço. Assim, sem mais, revelava uma certa luz que lhe subia as maças do rosto. Nem sequer era contente. Era feliz.
Uma felicidade leviana. Desconfiavam alguns.
Telefonava a dizer


-estou tão feliz! Nem imaginas.
E dizia,


-estou feliz, sabe? ao segurança sisudo da portaria, que nem sequer dizia bom-dia. E à mulher da limpeza que deixa, atrás de si, um odor a detergente aloé vera. E ao sapateiro, que lhe deixa nas solas um caminho novo para andar. E à D. Amélia do café curto, diário. Dizia, estou feliz, hoje! Dizia com a boca, com os olhos, com as mãos. Em silêncio. Nunca percebeu bem, porque não havia de o dizer, se o sentia. E a mãe que sempre lhe dissera,

-o melhor guarda-mo-lo para nós. E só depois de o dizer, é que as palavras da mãe lhe vinham à memória, como como que um alarme desactivado.


Parecia não ter medo da felicidade.De se sentir feliz. Como se o mundo inteiro estivesse feliz como ela. [como se na humanidade não existissem professores Funes]
Porque havia de guardar só para si que em vez do quimdim, desenformara o sol. Brilhante. Porque não havia de telefonar a dizer
-estou tão feliz! Nem imaginas.
O quindim e o lombo assado com ameixas, divinos. E o vinho e os sorrisos e o calor da casa. Tudo misturado. Os quadros, a música, as lombadas dos livros nas prateleiras. Tudo felicidade. Metia impressão. Era ofensiva. Tanta felicidade. Em detalhes.
Porque havia de desmentir que aqueles sorrisos anónimos, pousados no seu rosto desmaquilhado, a faziam feliz. Porque havia de guardar só para si que uma lua imensa lhe fazia os dias claros. Que os pontos, as vírgulas, os sinais de exclamação e os parêntis, lhe davam uma insondável felicidade enquanto escrevia. Porque o havia de esconder?

E os vasos nas janelas, com malvas floridas! Que felicidade! O multicolor das frutas na mercearia; os pessegueiros a florirem, como o do longínquo quintal, na Páscoa da sua infância.
As tiradas do João da Ega, nos Maias, então...Eram capaz de lhe pôr o dia inteiro feliz. Se as recordava de manhã. O cheiro dos jornais e do café. O amarelo antigo dos eléctricos. O rio na foz. E a maresia no parapeito das janelas acesas.


Qualquer coisa que resistia.
A areia na ampulheta, capaz do mistério do tempo envidraçado.
Imensas felicidades avulso. Tão estranho.
O despertar sem relógio. Os olhos no tecto branco do quarto. Um dia mais, por adivinhar. E a gratidão de ter os olhos abertos. Os braços abertos. O espanto de pensar em tudo isto. E ficar feliz. Feliz. Qual Amélie Poulain com os dedos mergulhados no saco de feijões secos, na mercearia. Viu o filme seis vezes. Um exagero tremendo. Só por causa dessa cena. Comovia-se com a descoberta do guionista! Uma sensação que imaginava só sua. Uma sensação de felicidade.


-coitada, diziam uns. Não sabe o que é estar realmente feliz,
diziam outros.