domingo, novembro 7

O Haver


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes in o Jardim Noturno, 15/04/1962


[grata ao Eduardo Virmond]
imagem: Jagna Olejnikowska

quarta-feira, agosto 26

A gente não faz amigos, reconhece-os


Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos.
Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.
A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o objeto dela se divida em outros afetos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade.
E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!
Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências ...
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.
Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida.
Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.
Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos.
Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure.
E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários,de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí, e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.
Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado. Se todos eles morrerem, eu desabo! Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles.
E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.
Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles.
Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer.
Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado,morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente, os que só desconfiam - ou talvez nunca vão saber -que são meus amigos! A gente não faz amigos, reconhece-os.
Vinicius de Moraes
[Para o João, com um beijo de PARABÉNS, feio :) ! Tudo de BOM, hoje e sempre! Que o teu "céu" seja sempre muito azul :)]
imagem: Jonathan Blondiau

terça-feira, abril 14

Cotidiano nº 2


Há dias em que eu não sei o que me

passa

Eu abro o meu Neruda e apago o sol

Misturo poesia com cachaça

E acabo discutindo futebol



Mas não tem nada, não

Tenho o meu violão...



Acordo de manhã, pão sem

manteiga

E muito, muito sangue no jornal

Aí a criançada toda chega

E eu chego a achar Herodes natural



Mas não tem nada, não

Tenho o meu violão...



Depois faço a loteca com a patroa

Quem sabe nosso dia vai chegar

E rio porque rico ri à toa

Também não custa nada imaginar



Mas não tem nada, não

Tenho o meu violão...



Aos sábados em casa tomo um porre

E sonho soluções fenomenais

Mas quando o sono vem e a noite

morre

O dia conta histórias sempre iguais



Às vezes quero crer mas não consigo

É tudo uma total insensatez

Aí pergunto a Deus: Escute, amigo

Se foi para desfazer, porque é que

fez


Vinicius de Moraes in Livro de Letras, pag. 139, Companhia da Letras, 1991
imagem: Fernando Penim Redondo