quarta-feira, maio 6

Se alguma vez eu tivesse vivido em Roma


Se alguma vez eu tivesse vivido em Roma, ou permanecido na cidade um período razoável, talvez este livro não fosse possível. Toda a gente sofre da síndrome de Lyautey: o marechal francês, nomeado governador de Marrocos nos primeiros anos do século XX, confessaria mais tarde que, no dia em que chegou, pensou escrever um livro; um mês depois, achava que tinha material para uma série de artigos de jornal; mas,ao fim de um ano, concluiu que não era capaz de produzir uma linha. Talvez isso aconteça com todas as cidades. Também Elias Canneti escreveu um livro admirável, impressionista e diverso, sobre Marraquexe;mas esteve lá umas semana e nunca mais voltou.
Para mais, Roma “é um arquétipo demasiado forte”, como disse Yves Bonnefoy: tudo, na cidade, é estímulo à escrita, tudo é recurso aos sentidos, tudo exalta a criatividade. Admirem-se as suas ruínas; mas admirem-se, como dizia Stendhal, “imaginando o que falta e abstraindo do que existe”. Percorram-se as suas igrejas; mas não se esqueça que elas nascem de uma pulsão religiosa sem paralelo. Visitem-se os seus museus; mas não deixemos que a pressão da quantidade nos gaste o olhar para aquilo que é essencial, as obras supremas casualmente alinhadas com as dos seus epígonos. E há as ruas, a beleza da gente, o seu bozear cantado, as cores, o clima, os jardins, os terraços debruçados do alto dos prédios sobre o vazio; e as laranjeiras, as mil e uma espécies de pinheiros, as azáleas e as magnólias, “faluas brancas num mar de verde carregado”, como escreveu o poeta Giuseppe Conte.
Este livro não descreve Roma: toma-a como pretexto para incursões em territórios que vivem comigo há muitos anos, seja o cinema italiano do pós-guerra ou a paixão da Tosca, a tragédia de Caravaggio ou a graça requintada de Rafael. E o meu longo fascínio, sempre ambivalente, pela arquitectura; o gosto pelas cenografias fantásticas de Bernini; a sugestão de uma grandeza impensável nas ruínas imperiais; o sonho de Adriano vazado nos restos da villa que fez construir nos arredores de Roma.Roma é uma tradição literária que conta mais do que se vê e uma tradição visual que nos mostra mais do que aquilo que qualquer literatura seria capaz de imaginar.
[...] A minha Roma, que só é a cidade que mais amo porque Lisboa não está a concurso, é muito mais do que aquilo que se dá neste livro. E o pouco que aqui está, se calhar, nem sequer o seria capaz de o escrever sobre Lisboa.
Às vezes, não estar lá é a melhor maneira de não se esquecer uma cidade. Este livro é um agradecimento, impessoal e indeterminado: viver faz todo o sentido, quando se conheceu Roma.


António Mega Ferreira [com fotografia de Clara Azevedo] in Roma, Pag. 131/133

imagem: Vista do Forum
[isto é até uma heresia quando este livro tem magníficas fotografias da Clara Azevedo]