terça-feira, dezembro 14
Eu vou
Finais de Janeiro de 1994
eu vou.
Este eu vou é como o cabeçalho de uma carta.
Eu vou,
o meu mundo «moderno» é perturbante. Só no fim do texto eu o deveria dizer, mas o fim do texto é imprevisível - estaca subitamente. Fica dito.
Levantei-me, pois, com dificuldade, sentindo na mão uma renda, mas pesada como uma salva de prata; choveu torrencialmente durante a noite, ventou, estou ao pé da letra, mergulhada dentro da água com imagens que passam rapidamente - releio Causa Amante, e admiro.me com a sua perenidade, estou-lhe grata por me ter tirado da cama, me acompanhar no banho e ter um som que me leva para outro lugar. Parece-me que Herbais está agora em toda a parte da casa, e que um poço profundo habita Sintra. Trago meias curtas muitas vezes, este inverno. Mal cobrem os tornozelos. É sendo criança nos pés que entro no meu mundo «moderno».
O território desta casa, hoje, dia de chuva,
estremece
como uma chávena nas mãos de Deus. Apesar de frágil, acho-o belo. Faz parte da minha sobrevivência actual, é o caderno guardado onde escrevo os meus pensamentos antes de ir à vida da rua, fazer as comparas do dia, tomar um café de máquina
e ouvir
outro cliente
dizer que é sensual e sublime. Ele refere-se à música e o que diz faz parte de um diálogo que se joga para cá e para lá do balcão - a propósito de um nome, o de quem serve - , e para quem eu olho com certa surpresa por deparar com um rosto de mulher que dá parte de inocente.
«Tudo isto se passa à maneira de Verlaine», segreda-me a árvore genealógica da minha sensibilidade e sabores. Não é que eu oiça, entretida a saborear o meu café; é o que me segreda o passo cadenciado da parelha de cavalos que estaca, abrupta, em frente do «bistrot». Dizem-me ainda, cobrindo o diálogo de sedução que se passa ao lado, ao ritmo da música, ao ritmo da música de Elvis « as metáforas dos cavalos sobre o texto não são metáforas. Não é o texto que estaca como nós - tudo estaca subitamente.» Tudo o que há pára de súbito. E, constantemente, recomeça.
Eu vou.
Eu vou pensar a minha vida do exterior. [...]
Maria Gabriela Llansol in Inquérito às Quatro Confidências, pag. 1, Relógio D´Água
Etiquetas: Escritores, Maria Gabriela Llansol
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