O mar tem o encanto das coisas que não se calam de noite, que para a nossa vida inquieta são uma autorização para dormir, uma promessa de que não vai tudo cair no nada, como a luz para as crianças que se sentem menos sós enquanto ela brilha. O mar não está separado do céu, como está a terra, o mar está sempre em harmonia com as cores, impressiona-se com os seus mais delicados cambiantes. Brilha ao sol e parece todas as noites morrer com ele. E depois de ele ter desaparecido, continua a lamentá-lo, a conservar um pouco de recordação luminosa, face à terra uniformemente escura. É o momento dos seus reflexos melancólicos e tão doces que, olhando-os, se sente o seu coração desfazer-se. Quando a noite está prestes a cair e o céu escurece sobre a terra enegrecida, o mar continua a luzir levemente, não se sabe por que mistério, por que brilhante resquício do dia submerso sob as águas.
O mar refresca a nossa imaginação porque não faz pensar na vida dos homens, mas alegra a nossa alma porque, tal como ela, é aspiração infinita e impotente, ímpeto incessantemente quebrado, lamento eterno e doce. Ele encanta-nos, como a música, que não traz em si, como a linguagem, vestígios das coisas, que nada nos diz dos homens, mas imita os movimentos das nossas almas. Erguendo-se com as vagas, caindo com elas, o nosso coração esquece as suas próprias fraquezas e consola-se numa harmonia íntima entre a sua tristeza e a do mar, que confunde o seu destino e o das coisas.
in ”Os Prazeres e os dias“, Marcel Proust (Tradução de Manuel João Gomes, Ed. Estampa)
1 Comment:
[já está! :)]
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