Isso agora não interessa. Ela contava que vivia perto do cemitério, mesmo ali à beira dos mortos, do cheiro das flores das senhoras que fazem o favor de manter esse negócio, do barulho do portão de ferro que rangia, gemia e chorava sempre que entrava mais um carro funerário. A morte era um ritual normal na vida da minha professora. Do que ela mais gostava era de observar o cemitério à noite. Tinha um fascínio enorme por aquilo e fazia apostas.
Há quem olhe para o céu à espera de uma estrela cadente, ardentemente à espera de pedir um desejo, condensar naquele rasgo luminoso, em queda livre, todas as esperanças de uma vida. Carminda preferia olhar para o cemitério e perceber onde estavam os mortos novos
pelos gases que passeavam no ar, como uma última manifestação dos corpos que partiam.
A mãe dizia-lhe que tinha demasiada imaginação.
Carminda jurava o conto do coveiro como verdadeiro:os gases eram como as almas a ir para o céu, devagar, a libertarem-se dos cadáveres e ela gostava de os ver, a desfazerem-se no negro da noite, contra a parca iluminação dos candeeiros velhos, de ferro antigo e ruidoso, que compunham o cenário do cemitério.
Eu gosto de pensar que morreu ali, na Póvoa, a olhar as almas gaseadas enquanto atormentava uma prol de netos que reviravam os olhos de cansaço por ser sempre a mesma história.
1 Comment:
... quando os sentidos acordam em palavras que nos embalam, só resta agradecer tão bendita criatividade... ou memórias despidas da pele para colocar na folha de papel.
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